Sobre Igreja

e Tradição

Uma Visão Ortodoxa Oriental

Arcipreste George Florovsky (1893-1979).

Tradução: Rev. Pedro Oliveira Junior.

 

 

Conteúdo:

A função da tradição na Igreja Antiga.

São Vicente de Lerins e tradição. A questão hermenêutica na Antiga Igreja. São Irineu e o "Cânon da Verdade." A regula fidei. Santo Atanásio e o ‘Escopo da Fé.’ O Propósito da exegese e a "Regra de Oração" São Basílio e a "Tradição não-escrita." A Igreja como intérprete das Escrituras. Santo Agostinho e a Autoridade Católica.

A autoridade dos Antigos Concílios e a Tradição dos Padres.

Os Concílios na Igreja Antiga. Os Concílios Imperiais ou Ecumênicos. Cristo: o critério da verdade. O significado do apelo aos Padres.

Revelação, Filosofia e Teologia.

    1. Revelação. II. Filosofia. III. Teologia.

Criação e condição da Criatura.

I. II. III. IV.

Notas e referências.

 

 

 

A função da tradição na Igreja Antiga.

"Ego vero Evangelio non crederem, ni si catholicae Ecclesiae commoveret auctoritas." [Na verdade, eu não teria acreditado no Evangelho, se a autoridade da Igreja Católica não tivesse me movido para tal]. Santo Agostinho, Epístola Contra os Maniqueus, I, 1.

São Vicente de Lerins e tradição.

O famoso dito de São Vicente de Lerins era característico da atitude da Igreja Antiga em assuntos de fé: "Nós devemos manter aquilo que tem sido acreditado em todo lugar, sempre e por todos" [Commonitorium, 2]. Isso era, ao mesmo tempo, o critério e a norma. A ênfase crucial estava ai na permanência do ensinamento Cristão. São Vicente estava na verdade apelando para a dupla "ecumenicidade" da fé Cristã — no espaço e no tempo. De fato, essa era a mesma grande visão que havia inspirado Santo Irineu no seu tempo: a Igreja Una, expandida e espalhada pelo mundo todo, e ainda falando com uma só voz, mantendo a mesma fé em todo lugar como se tivesse sido passada pelos santos Apóstolos e preservada pela sucessão de testemunhas: quae est ab apostolis, quae per successionem presbyterorum in ecclesiis custoditur. ["Que tem sido preservada na Igreja desde os Apóstolos e através da sucessão dos presbíteros"]. Esses dois aspectos da fé, ou melhor — as duas dimensões, nunca poderiam ser separadas uma da outra. Universitas e antiquitas, assim como consensio, pertencem um aos outros. E nem era um critério adequado em si. "Antigüidade" em si não é uma garantia suficiente de verdade, a menos que um consenso compreensivo dos "antigos" possa ser demonstrado satisfatoriamente. E um consensio como tal não seria conclusivo, a menos que ele pudesse ser rastreado continuamente até as origens Apostólicas. Porém, São Vicente sugeriu, que a verdadeira fé poderia ser reconhecida por um duplo recurso—Escritura e Tradição: duplici modo... primum scilicet divinae legis auctoritate, tum deinde ecclesiae catholicae traditione. ["De dois modos...primeiro claramente pela autoridade das Santas Escrituras, então pela tradição de Igreja Católica"]. Isso, todavia, não implicava que existissem duas fontes de doutrina Cristã. Na verdade, a regra, ou cânon, das Escrituras era "perfeito" e "auto-suficiente" — ad omnia satis superque sufficiat. ["para todas as coisas completa e mais do que suficiente"]. Então porque deveria ser suplementada por qualquer outra "autoridade"? Porque seria então imperativo invocar também a autoridade do "entendimento eclesiástico" — ecclesiasticae intelligentiae auctoritas? A razão era óbvia: as Escrituras eram interpretadas diferentemente pelos indivíduos: ut paene quot hominess tot illinc sententiae erui posse videantur. [Então alguém pode ter quase a impressão de que elas podem produzir tantos significados diferentes, quantos são os homens]. A essa variedade de opiniões "privadas" São Vicente opunha a mente "comum" da Igreja, a mente da Igreja Católica: ut propheticae e apostolicae interpretationis línea secundum ecclesiastici et catholici sensus normam dirigatur. ["Que a tendência das interpretações dos escritos proféticos e apostólicos seja dirigida de acordo com a regra do significado eclesiástico e Católico"]. A tradição não era, de acordo com São Vicente, uma instância independente, nem era uma fonte complementar da fé. "Entendimento eclesiástico" não poderia acrescentar nada às Escrituras. Mas ele era o único meio de descobrir e assegurar o verdadeiro significado das Escrituras. A Tradição era, de fato, a interpretação autêntica das Escrituras. E nesse sentido, ela era co-extensiva com as Escrituras. A Tradição era, na verdade, "As Escrituras entendidas corretamente." E as Escrituras eram para São Vicente o único, primário e definitivo canon da verdade Cristã. (Commonitorium,cap.II, conferir com Cap. 28).

A questão hermenêutica na Antiga Igreja.

Nesse ponto São Vicente estava completamente de acordo com a tradição estabelecida. Na admirável frase de Santo Hilário de Poitiers, scripturae enim non in legendo sunt, sed in intelligendo. [Pois as Escrituras não estão na leitura, mas no entendimento"; em Constantium Aug., lib.II cap9,MLX,570; a frase é repetida também por São Jerônimo, Dial.c. Lúcifer, cap. 28, ML XXIII,190,191]. O problema da exegese correta ainda era um assunto fervente no século quarto, na luta da Igreja com os Arianos, não menos do que tinha sido no século segundo, na luta que havia havido contra os Gnósticos, Sabelianos e Montanistas. Todas as partes em disputa usavam apelar para as Escrituras. Os heréticos, mesmo os Gnósticos e Maniqueus, usavam a citação dos textos e passagens escriturais, e invocavam a autoridade dos Santos Escritos. Além disso a exegese era, naquele tempo, o principal, e talvez o único, meio teológico, e, a autoridade das Escrituras era soberana e suprema. Os Ortodoxos eram forçados a levantar as questões hermenêuticas cruciais: Qual era o princípio de interpretação? Pois no século segundo o termo "Escrituras" denotava primariamente o Velho Testamento e, de outro lado a autoridade dessas "Escrituras" era fortemente desafiada, e na verdade repudiada, pelo ensinamento de Marcion. A Unidade das Escrituras tinha que ser provada e justificada. Qual era a base, e a garantia do Cristão, e da Cristologia, o entendimento da "Profecia," isto é, — do Velho Testamento? Foi nessa situação histórica que a autoridade da Tradição foi invocada pela primeira vez. As Escrituras pertenciam à Igreja, e era só na Igreja, dentro da comunidade da fé correta que elas poderiam ser entendidas adequadamente e interpretadas corretamente. Heréticos, isso é — aqueles fora da Igreja não tinham a chave para a mente das Escrituras. Não era suficiente somente ler e citar as palavras Escriturais — o verdadeiro significado, ou intenção das Escrituras, tomadas como um todo integral, tinha que ser extraído. Tinha-se que arrancar, como era feito antes, o verdadeiro modelo da revelação Escritural, o grande projeto da Providência redentora de Deus, e isso poderia ser feito somente por uma intuição da fé. Era por fé que Christuszeugniss poderia ser discernido no Velho Testamento. E era por fé que a unidade do Evangelho tetramórfico poderia ser certificada. Mas essa fé não era uma fé subjetiva e arbitrária de indivíduos—era a fé da Igreja, enraizada na mensagem dos Apóstolos, ou kerigma, e autenticada por ela. Para aqueles fora da Igreja, ficava faltando justamente essa mensagem básica e abarcante, o verdadeiro coração dos Evangelhos. Para essas pessoas, as Escrituras eram somente letra morta, ou um arranjo de passagens e histórias desconexas, que elas se esforçavam em arranjar ou rearranjar em seus próprios modelos, derivados de fontes estranhas. Elas tinham outra fé. Esse foi o principal argumento de Tertuliano em seu apaixonado tratado De Praescriptione. Ele não discutia Escrituras com Heréticos — eles não tinham o direito de usar as Escrituras, já que elas não pertenciam a eles. As Escrituras eram de possessão da Igreja. Enfaticamente Tertuliano insistia na prioridade da "regra de fé," regula fidei. Ela era a única chave para o entendimento das Escrituras. E essa regra era Apostólica, era enraizada e derivada da pregação Apostólica. C.H.Turner descreveu corretamente o significado e intenção desse apelo ou referência à "regra de fé" na Igreja Antiga. "Quando os Cristãos falavam da "Regra de Fé" como "Apostólica," eles não queriam dizer que os Apóstolos tinham se reunido e formulado tal regra...O que eles queriam dizer, é que a profissão de crença que todos catecúmenos recitavam antes do seu batismo, incorporava de forma sumária a fé que os Apóstolos tinham ensinado e comprometido a seus discípulos a ensinar posteriormente" Essa profissão era a mesma em todo lugar, apesar do fraseado real poder variar de lugar para lugar. Era sempre intimamente relacionado com a fórmula batismal [C.H Turner, Apostolic, Sucession, em "Essays on the Early History of the Church and the Ministry," editado por H.B.Swete (Londres,1918), pgs.101-102. Ver também Yves M.J.Coulgar, O.P., La Tradition et les traditions, 11. [Essai Théologique (Paris, 1963), pg. 21 e segs.] Separada dessa "regra" as Escrituras poderiam ser mal interpretadas. Escritura e Tradição eram indivisivelmente interligadas para Tertuliano. Ubi enim apparuerit esse veritatem disciplinae et fidei christiane, illic erit veritas scripturarum et expositionum et omnium traditionum christianarum. ["Pois só onde o verdadeiro ensinamento e fé Cristã forem evidentes serão encontradas as verdadeiras Escrituras, as verdadeiras interpretações, e todas as verdadeiras tradições Cristãs," XIX.3"]. A Tradição Apostólica da fé era a guia indispensável para o entendimento das Escrituras e a garantia definitiva da correta interpretação. A Igreja não era uma autoridade externa, que tinha que julgar sobre as Escrituras, mas sim a mantenedora e guardiã daquela Divina verdade que estava armazenada e depositada nos Escritos Sagrados [Cf. E. Flesseman-van-Leer, Tradition and Scripture in the Early Church (Assen,1954), pgs. 145-185; Damien van den Eynde, Les Normes de l’Enseignment Chrétien dans la litterature patristique des trois premiers siècles (Gembloux-Paris, 1933), pgs. 197-212; J.K.Stirniman, Die Praescriptio Tertullians im Lichte des römischen Rechts und Theologie (Freiburg, 1949);e também a introdução e notas de R.F.Refoulé, O.P., na edição de De praescriptiones, na "Sources Chrétiennes," 46 (Paris, 1957)].

 

São Irineu e o "Cânon da Verdade."

Denunciando o manuseio errado das Escrituras, Santo Irineu introduziu uma comparação pitoresca. Um artista habilidoso produziu uma bela imagem de um rei, composta de muitas pedras preciosas. Porém, outro homem pega essa imagem de mosaico, e rearranja a imagem em outro modelo para produzir a imagem de um cachorro ou de uma raposa. E aí ele começa a explicar que essa era a imagem original, feita pelo primeiro mestre, com o pretexto que as gemas, (as ψηφιδες), eram autênticas. De fato, no entanto, o projeto original tinha sido destruído — λυσας την υποκειμενην του ανθρωπου ιδεαν. Isso é precisamente o que os heréticos fazem com as Escrituras. Eles desconsideram e rompem "a ordem e conexão" dos Escritos Sagrados e "desmembram a verdade" — λυοντες τα μελη της αληθειας. Palavras, expressões e imagens — ρηματα, λεξεις παραβολαι — são genuínos, mas o projeto, υποθεσις (ipothesis), é arbitrário e falso (adv.haeres.,1.8.1). São Irineu sugeriu também outra analogia. Havia em circulação naquele tempo certos Homerocentones, compostos de versos genuínos de Homero, mas tomados por acaso e fora de contexto, e rearranjados de maneira arbitrária. Todos os versos individuais eram verdadeiramente de Homero, mas a nova história, fabricada por meio do rearranjo, não era de todo de Homero. Porém, alguém poderia ser facilmente enganado pelo som familiar do idioma homérico (1.9.4.). Vale mencionar que, Tertuliano também se refere a esses curiosos centones, feitos com versos de Homero ou de Virgílio (De praes XXXIX).Aparentemente, era um ardil comum na polêmica literatura daquele tempo. Agora, o ponto que São Irineu se esforça para demonstrar é óbvio. As Escrituras tem seu próprio modelo ou projeto, sua estrutura e harmonia internas. Os heréticos ignoram esse modelo, ou ainda o substituem por seus próprios modelos. Em outras palavras, eles rearranjam a evidência Escritural num modelo que é bastante estranho para as Escrituras em si. Porém, citando São Irineu, aqueles que mantiveram sem distorções o "cânon da verdade" que receberam no batismo, não terão dificuldade em "recolocar cada expressão no seu devido lugar." Então eles serão capazes de contemplar a verdadeira imagem. A frase real usada por São Irineu é peculiar: προσαρμοσας τω της αληθειας (prosarmosas to tis alithias somatio) ( que é grosseiramente interpretada na antiga tradução latina como corpusculum veritatis). Mas o significado da frase é muito claro. O somatio não é necessariamente um diminutivo. Ele simplesmente denota um "corpo incorporado." Na frase de São Irineu ele denota o corpus da verdade, o contexto correto, o projeto original, a "verdadeira imagem," a disposição original das gemas e versos. [Cf. Kattenbusch, Das Apostolische Symbol, Bd. II (Leipzig, 1900), ss.30 ff., e também sua nota no "Zeitschrift f. neutest. Theologie," (1909), ss.331-332]. Assim, para São Irineu, a leitura das Escrituras devia ser guiada pela "regra da fé" — à qual os fiéis estão comprometidos (e na qual eles foram iniciados) pela sua profissão de batismo, e pela qual, somente por ela, a mensagem básica ou "a verdade" das Escrituras pode ser acessada e identificada adequadamente. A frase favorita de São Irineu era "a regra da verdade," κανων της αλιθειας (canon tis alithias), regula veritatis. Agora, essa regra era nada mais do que o testemunho e pregação dos Apóstolos, seu κηρυγμα (kirigma) e praedicatio (ou praeconium), que estava "depositado" na Igreja e a ela confiado pelos Apóstolos, e que a partir daí foi completamente mantido e passado, com a completa unanimidade em todos os lugares, pela sucessão de pastores acreditados: Aqueles que, junto com a sucessão do episcopado, receberam o firme carisma da verdade [IV.26.2]. Seja qual for a conotação direta e exata dessa fértil frase [Tem sido comentado que charisma veritatis seria, na verdade, simplesmente a doutrina e verdade Apostólica (da Revelação Divina), tanto que Santo Irineu não menciona qualquer talento ministerial especial dos bispos. Ver Karl Muller, Kleine Beträge zur alten Kirchengeschichte, 3. Das Charisma veritatis und der Episcopatbei Irenaeus, no Zeitschrift f. Neut. Wissenschaft, Bd. Xxiii (1924), ss.216-222; cf. Van den Eynde, pgs.183-187; Y.M.J.Coungar, O.P., La Tradition et les traditions, Êtude Historique (Paris, 1960), pgs.97-98; Hans Freiherr von Campemhausen, Kirchliches Amt und geistliche Vollmacht in der ersten drei Jahrunderten (Tübingen, 1953) ss.185 ff.; e também com especial ênfase no caráter de "Sucessão" — Einar Molland, Irenaeus von Lugdunum and the Apostolic Sucession no Journal of Ecclesiastical History, 1.1,1950, pgs. 12-28, e Le développement de l’idée de sucession apostolique, Revue d’histoire et de philosophie réligieuses, xxxiv.i,1954, pgs1-29. Ver de outro lado as observações críticas de Arnold Ehrhardt, The Apostolic Succession in the first two centuries of the Church (Londres, 1953), pgs. 207-231, especial.213-214], não pode haver dúvida que, na mente de São Irineu, essa preservação e transmissão contínua da fé depositada era operada e guiada pela presença, em forma de habitação, do Espírito Santo na Igreja. Toda a concepção de Igreja de São Irineu era, ao mesmo tempo, "carismática" e "institucional." E Tradição era, no seu entendimento, um depositum juvenescens, uma tradição viva, confiada à Igreja como um novo sopro de vida, justamente como o sopro concedido ao primeiro homem — (quemadmodum aspiratio plasmationis III.24.1). Bispos ou "presbíteros" eram na Igreja, guardiões e ministros acreditados desse depósito de verdade feito há algum tempo. "Onde, portanto, a carismata do Senhor tiver sido depositada (posita sunt), ali é apropriado para apreender a verdade, particularmente daqueles que têm aquela sucessão de Igreja que vem dos Apóstolos (apud quos est ea quae est ab apostolis ecclesiae sucessio), e que dispõe de uma conduta correta e inocente, e de um discurso não adulterado e incorrupto. Pois estes também preservam a nossa fé em um Deus que criou todas as coisas, e eles aumentam aquele amor pelo Filho de Deus, Que cumpriu tão maravilhosa obra por nós, e eles expõem as Escrituras sem perigo, sem blasfemar Deus, nem desonrar os Patriarcas, nem desprezar os Profetas." (IV.26.5).

A regula fidei.

A tradição na Igreja Antiga era, antes de tudo, um princípio e método hermenêutico. As Escrituras podiam ser correta e completamente acessadas e entendidas somente à luz e no contexto da Tradição Apostólica viva, que era um fator integral da existência Cristã. Era assim, não porque a Tradição pudesse acrescentar qualquer coisa ao que havia sido manifestado nas Escrituras, mas porque ela provia o contexto vivo, a perspectiva compreensiva, e só nela, a verdadeira "intenção" e o "projeto" total dos Santos Escritos, da Divina Revelação, poderiam ser detectados e pegos. A verdade era, segundo São Irineu, um "sistema bem fundamentado," um corpus (adv. Haeres.II.27.1 — veritatis corpus), uma melodia harmoniosa (II.38.3). Mas era justamente essa "harmonia" que só poderia ser apanhada por uma intuição de fé. Na verdade, a Tradição não era simplesmente uma transmissão de doutrinas herdadas, de "modo judaico," mas sim a vida contínua na verdade [Cf. Dom Odo Casel O.S.B., Benedict Von Nursia als Pneumatiker, no "Heilige Überlieferung" (Münster, 1938), pgs.100-101: Die heilige Überlieferung ist daher in der Kirche Von Anfang na nicht bloss ein Weitergeben Von Doktrinen nach spätjudischen (nachchristlicher) Art gewesn, sondern ein lebendiges Weiterblühen des göttlichen Lebens. Numa nota de rodapé Dom Casel manda o leitor de volta para John Adam Möhler]. Não era um núcleo fixo ou um complexo de proposições obrigatórias, mas sim uma visão do significado e impacto de eventos reveladores, da revelação do "Deus Que age." E isso era determinante no campo da exegese das Escrituras. G.L.Prestige colocou bem: "A voz das Escrituras poderia ser completamente ouvida somente se os textos fossem amplamente e racionalmente interpretados, de acordo com o credo apostólico e com a evidência da prática histórica do Cristianismo. Foram os heréticos que acreditaram em textos isolados, enquanto os Católicos prestaram mais atenção no todo dos princípios escriturais." [ G.L. Prestige, Fathers and Heretics (Londres, 1940), p. 43]. Resumindo sua cuidadosa análise do uso da Tradição na Igreja Antiga, a Dra. Ellen Flessemanvan-Leer escreveu: "As Escrituras sem interpretação não são Escrituras; o momento em que ela é usada e torna-se viva é sempre quando ela é interpretada." Mas, as Escrituras devem ser interpretadas "de acordo com seu propósito, que está aberto na regula fidei. Assim, essa regula torna-se, como se fosse, a instância de controle da exegese. A real interpretação das Escrituras é a igreja pregando, é tradição." [Flesseman, pgs. 92-96. Sobre São Irineu ver Flesseman,100-104; van den Eynde, 159-187; B. Reynders, Paradosis, Le progrès de l’idée de tradition jusqu’a Saint Irinée, na "Recherches de théologie ancienne et mediévale, v (1933),

155-191; La polemique de Saint Irenée, ibidem, vii (1935),5-27; Henry Holstein, La Tradition des Apotres chez Saint Irenée, na ‘Recherches de Science réligieuse’, xxxvi (1949), 229-270; La Tradition dans l’Eglise (Paris, 1960), 32-43; Saint Irenée, Introduction à l’étude de sa théologie (Paris,1960)].

Santo Atanásio e o ‘Escopo da Fé.’

A situação não mudou no Quarto século. A disputa com os Arianos esteve centrada de novo no campo exegético — pelo menos na sua fase inicial. Os Arianos e seus apoiadores produziram um impressionante rol de textos Escriturísticos em defesa de sua posição doutrinal. Eles queriam restringir a discussão teológica ao campo Escriturístico somente. Suas questões tinham que ser encontradas precisamente nesse campo, antes de tudo. E o método exegético deles, a maneira pela qual eles manejavam os textos, era muito a mesma que a dos dissidentes de antes. Eles estavam operando com textos de prova sem muita preocupação com o contexto total da Revelação. Era imperativo para os Ortodoxos apelar para a mente da Igreja, para aquela "Fé" que tinha sido uma vez liberada, e a partir de então, fielmente mantida. Essa era a principal preocupação, e o método usual, de Santo Atanásio. Os Arianos citaram várias passagens das Escrituras para consubstanciar sua contestação, que afirmava que o Salvador era uma criatura. Em resposta santo Atanásio invocou a "regra de fé." Esse era seu argumento usual. "Que nós, que possuímos τον σκοπον της πιστεως (o escopo da fé), restauremos o significado correto (ορθην την διανοιαν) do que eles interpretaram erradamente. (c.Arian.III.35). Santo Atanásio argumentou que a interpretação "correta" de textos particulares só era possível na total perspectiva da fé. "O que eles alegam agora dos Evangelhos eles explicam de um sentido errôneo, que nós podemos descobrir quando nós levamos em consideração τον σκοπον της καθ ημας τους Χριστιανοθς πιοτεως [o escopo da fé de acordo com nós Cristãos], e lendo as Escrituras usando ele (τον σκοπον, ton skopon) como regra — (ωσπερ κανονι χρησαμενοι»)" (III.28). De outro lado, muita atenção também deve ser dada para o contexto imediato e colocação de cada expressão e frase particular, e a exata intenção do escritor deve ser cuidadosamente identificada (I.54). Escrevendo para o Bispo Serapion, sobre o Espírito Santo, Santo Atanásio argumenta contra os Arianos que eles ignoraram ou perderam "o escopo das Divinas Escrituras" (ad Serap., II.7; cf ad episc. Eg.,4). O (σκοπος) skopos era na linguagem de Santo Atanásio, um equivalente próximo do que São Irineu costumava chamar de (υποθεσις) ipothesis —a "idéia" subjacente, o projeto verdadeiro, o significado pretendido ( Ver Guido Muller, Lexicon Athannasianum, sub você: id quod quis docendo,scribendo, credendo intendit).De outro lado, a palavra (σκοπος) skopos era um termo habitual na linguagem exegética de certas escolas filosóficas, especialmente no NeoPlatonismo. A exegese desempenhou um papel importante no esforço filosófico daquele tempo, e a questão do princípio hermenêutico tinha que ser levantada. Jamblicos era um dos que eram muito formais nesse ponto. Tinha-se que descobrir o "ponto principal," ou o tema básico do tratado todo que estivesse sobre exame, e mantê-lo o tempo todo na mente [Ver Karl Prächter, Richtung und Schulen im Neuplatonismus,em "Genethalikon" (Carl Roberts zum 8. März 1910), (Berlin, 1910). Prächter traduziu skopos como Zielpunkt ou Grundthema (s.128 f.). Ele caracterizava o método de Jamblicos como uma universalistische Exegese (138). Proclus, em seu comentário sobre Timeu, contradiz Porfírio e Jamblicos: Porfírio interpreta textos merikoteron, enquanto Jamblicos interpreta epoptikoteron, que é de uma maneira compreensiva ou sintética: em Tim. I, pg. 204 ff., citado por Prächter, s.136.). Santo Atanásio podia bem estar acostumado com o uso técnico desse termo. Era desorientador, ele contestou, citar textos e passagens isoladamente, desconsiderando a intenção total dos Santos Escritos. É obviamente inacurado interpretar o termo (σκοπος) skopos no idioma de Santo Atanásio como "a tendência geral" das Escrituras. O "escopo" da fé, ou das Escrituras, é precisamente seu núcleo, que é condensado na "regra de fé" como ele tem sido mantido na Igreja e "transmitido de Padres para Padres," enquanto os Arianos não tem "Padres" para as suas opiniões (de decr., 27). Como o Cardeal Newman bem observou, Santo Atanásio olhava a "regra de fé" como um definitivo "princípio de interpretação" contrapondo a "mente eclesiástica" (την εκκλησιαστικην διανοιαν, c. Arian. I. 44) às "opiniões particulares" dos heréticos [Select Treatises of St. Athanasius, traduzidos livremente por J.H.Cardinal Newman, Vol. II (oitava edição, 1900), pgs.250-252]. Vezes e vezes em seu escrutínio dos argumentos dos Arianos, Santo Atanásio teria sumarizado os princípios da fé Cristã, antes de começar a reexaminar os textos-prova alegados, para recompor os textos em sua perspectiva própria. H.E.W.Turner descreveu esse modo exegético de Santo Atanásio:

"Contra a técnica favorita dos Arianos de pressionar o significado gramatical do texto sem olhar nem para o contexto imediato ou para a moldura maior de referência no ensinamento das Escrituras como um todo, ele insiste na necessidade de tomar a tendência geral da Fé da Igreja como Cânon de interpretação. Os Arianos são cegos para a análise ampla da teologia Escriturística e portanto falham em levar em suficiente consideração o contexto geral no qual os seus textos-prova são colocados. O sentido das Escrituras deve, ele próprio ser tomado como Escrituras. Isso tem sido tomado com um virtual abandono do apelo das Escrituras e sua substituição por um argumento da Tradição. Certamente em mãos menos cuidadosas ele pode conduzir à imposição de uma camisa-de-força sobre as Escrituras como o dogmatismo dos Arianos e Gnósticos tentou fazer. Mas essa não era certamente a intenção de Santo Atanásio. Para ele isso representa um apelo da exegese bêbada para a exegese sóbria, de uma insistência míope sobre a questão gramatical para um significado de intenção (σκοπος skopos, χαρακτηρ haraktir) das Escrituras" (H.E.W.Turner, The Pattern of Christian Truth (Londres, 1954) pgs.193-194).

Parece, no entanto, que o Professor Turner exagerou o perigo. O argumento era ainda estritamente Escritural, e, em princípio, Santo Atanásio admitia a suficiência das Escrituras, sagradas e inspiradas, para defesa da verdade (c.Gentes,I). Somente que as Escrituras tinham que ser interpretadas no contexto da tradição viva da crença, sob a direção e controle da "regra da fé." Essa "regra," no entanto, não era de modo algum, uma autoridade "estranha" que poderia ser "imposta" sobre os Santos Escritos. Era a mesma "pregação Apostólica" que estava escrita nos livros do Novo Testamento, mas era, como se fosse, essa pregação in epítome. Santo Atanásio escreve para o Bispo Serapion: "Olhemos para essa mesma tradição que o Senhor deu (εδωκεν), os Apóstolos pregaram (εκηρυξαν), e os Padres preservaram (εφυλαξαν). Sobre isso a Igreja está baseada" (ad Serap.,I.28). A passagem é altamente característica de Santo Atanásio. Os três termos na frase, na verdade coincidem, (παραδοσις) paradosis (tradição) — do próprio Cristo, (διδασκαλια) didaskalia (ensinamento) — pelos Apóstolos, e (πιστις) pistis (fé) — da Igreja Católica. E essa é a base (θεμελιον) themelion da Igreja — uma só e única base. As próprias Escrituras parecem estar resumidas e incluídas nessa "Tradição," vinda, como foi,do Senhor. No capítulo de encerramento dessa primeira epístola a Serapion, Santo Atanásio retorna mais uma vez ao mesmo ponto. "De acordo com a tradição passada a nós pelos Padres, eu passei essa tradição sem inventar nada estranho a ela. O que eu aprendi, eu escrevi (ενεχαραξα, eneharaksa), em conformidade com as Escrituras" (c.33). Em uma ocasião Santo Atanásio classificou as Escrituras como uma paradosis Apostólica (ad Adelph., 6). É característico que em toda discussão com os Arianos nem uma única referência foi feita a "tradições" — no plural. O único termo de referência foi sempre "Tradição," na verdade, a Tradição, a Tradição Apostólica, compreendendo o conteúdo total e integral da "pregação" Apostólica, e resumido na "regra de fé." A unidade e solidariedade dessa Tradição eram o ponto principal e crucial em todo o argumento.

O Propósito da exegese e a "Regra de Oração."

O apelo da Tradição era realmente, um apelo à mente da Igreja. Era assumido que a Igreja tinha o conhecimento e o entendimento da verdade, da verdade e do "significado" da Revelação. Coerentemente, a Igreja tinha ambas as coisas, a competência e a autoridade para proclamar o Evangelho e para interpretá-lo. Isso não implicava em que a Igreja estivesse "acima" das Escrituras. Ela estava ao lado das Escrituras, mas de outro lado, não estava amarrada por suas "letras." O propósito definitivo da exegese e da interpretação era conseguir o significado e intenção dos Santos Escritos, ou melhor o significado da Revelação, da Heilgeschichte. A Igreja tinha que pregar Cristo, e não simplesmente "as Escrituras." O uso da Tradição na Igreja Antiga pode ser entendido só no contexto do real uso das Escrituras. A Palavra era mantida viva na Igreja. Ela era refletida em sua vida e estrutura. Fé e Vida eram organicamente interligadas. Seria apropriado lembrar nesse ponto de famosa passagem do Indiculus de gratia Dei, que foi erradamente atribuído ao Papa Celestino, mas foi de fato composto por São Próspero de Aquitânia: "Existem os decretos invioláveis da Santa e Apostólica Sé pelos quais nossos santos Padres superaram as perniciosas inovações...Olhemos as orações sagradas que, de acordo com tradição Apostólica nossos padres oferecem em todas as Igrejas Católicas no mundo todo. Que a regra de oração faça a regra de fé." De fato, é verdade, que essa frase em seu contexto imediato não era a formulação de um princípio geral, e sua intenção direta era limitada a um ponto particular: Batismo de crianças como uma instância indicativa da realidade do pecado herdado ou original. De fato, não era uma proclamação autoritativa de um Papa, mas a opinião particular de um teólogo individual, expressa na contingência de uma discussão acalorada [Ver Dom M.Capuyns, L’origine des Capitula Pseudo-Celestiniens contre les Semipelagiens, em "Révue Bénéditine," t. 41 (1929), pgs.156-170; especialmente Karl Federer, Liturgie und Glaube,Eine theologiegeschichteliche Untersuchung (Freiburg in der Schweiz, 1950.Paradosis, IV; cf. Dom B.Capelle, Autorité de la Liturgie chez les Pères, "Recherches de Théologie ancienne et médiévale," t. XXI (1954) pgs.5-22]. Porém, não foi só por acidente ou mal entendido que a frase tenha sido tomada fora do seu contexto imediato e levemente mudada para expressar o princípio: ut legem credendi statuat lex orandi [então a regra de oração deveria estabelecer a regra de fé]. "Fé" encontrou sua primeira expressão precisamente nas fórmulas litúrgicas, sacramentais e de ritos — e "Credos" surgiram primeiro como parte integral do rito de iniciação. "Sumários de fé, interrogatórios ou declaratórios, eram sub-produtos da liturgia e refletiam sua rigidez ou plasticidade," diz J.N.D.Kelly [J.N.D.Kelly, Early Christian Creeds Londres, (1950), p. 167]. "Liturgia" no seu sentido amplo e compreensivo da palavra, foi o primeiro fruto da Tradição da Igreja, e o argumento da lex orandi (Regra de oração) foi persistentemente usado em discussões já no final do século segundo. A Oração da Igreja era uma solene proclamação de sua Fé. A invocação batismal do Nome foi provavelmente a primeira fórmula Trinitária, assim como a Eucaristia foi o primeiro testemunho do mistério da Redenção, em sua totalidade. O próprio Novo Testamento veio a existir, como uma "Escritura" na Igreja Orante. E as Escrituras foram primeiramente lidas num contexto de oração e meditação.

São Basílio e a "Tradição não-escrita."

Já São Irineu usava se referir à "fé" como aquela que tinha sido recebida no batismo. Argumentos litúrgicos foram usados por Tertuliano e São Cipriano [Ver Federer, op. Cit., 59ff.; F.De Pauw, La justification des traditions non écrites chèz Tertullien, em ‘Ephemerides Theologicae Lovanienses’, t.XIX,1/2, 1942 pgs.5-46. Cf. também Georg Kretschmar, Studien zur frühchristlichen Trinitätstheologie (Tübingen, 1956)]. Santo Atanásio e os Capadócios usaram o mesmo argumento. O desenvolvimento completo desse argumento sobre tradição litúrgica nós encontramos em São Basílio. Em sua disputa com os últimos Arianos, a respeito do Espírito Santo, São Basílio construiu seu maior argumento na análise de doxologias, como eram usadas nas Igrejas. O tratado de São Basílio, De Spiritu Sancto, foi um tratado ocasional, escrito no fogo e calor de uma luta desesperada, e dirigida para uma situação histórica particular. Mas São Basílio estava preocupado ali com os princípios e métodos da investigação teológica. Em seu tratado São Basílio estava argumentando sobre um ponto particular — na verdade, o ponto crucial na correta doutrina Trinitária — a omotimia do Espírito Santo. Sua principal referência era uma testemunha litúrgica; a doxologia de um tipo definido ("com o Espírito"), que, como ele podia demonstrar, tinha sido amplamente usada nas Igrejas. A frase, por certo, não estava nas Escrituras. Ela era atestada somente pela Tradição. Mas seus oponentes não admitiam nenhuma autoridade que não fosse a das Escrituras. Foi nessa situação que São Basílio esforçou-se para provar a legitimidade de um apelo à Tradição. Ele queria mostrar que a omotimia (ομοτιμια) do Espírito, isto é, Sua Divindade, sempre foi acreditada na Igreja e era parte da profissão de fé do Batismo. De fato, como Père Benoit Pruche tinha observado corretamente, o omotimos (ομοτιμιος), era para São Basílio um equivalente do omousios (ομοουσιος) [Ver sua introdução para a edição do tratado De Spiritu Sancto em "Sources Chrètiennes," (Paris, 1945),pgs.28 e segs.]. Existia pouca coisa nova nesse conceito, exceto consistência e precisão.

Seu fraseado, no entanto, era bastante peculiar. "Da dogmata e kerygmata, que são mantidas na Igreja, nós temos algumas do ensinamento escrito (εκ της εγγραφου διδασκαλιας), e algumas nós derivamos da paradosis Apostólica, que nos foram passadas en mistirio (εν μυστηριω). E ambas têm a mesma força (την αυτην ισχυν) em assuntos de piedade. (de Spir.S.,66). À primeira vista, pode-se ter a impressão que São Basílio introduz aqui uma dupla autoridade e um duplo padrão—Escrituras e Tradição. Mas, na verdade, ele estava muito longe de fazer isso. Seu uso de termos é que é peculiar. Kerygmata era para ele o que no idioma posterior era usualmente entendido como "dogmas" ou "doutrinas" — um ensinamento e regras formais e autoritativos em matérias de fé, ensinamento aberto ou público. De outro lado, dogmata era o complexo total de "hábitos não-escritos" (τα αγραφα των εθνων), ou, de fato,a estrutura toda da vida litúrgica e sacramental. Deve-se ter em mente que o conceito, e o próprio termo, "dogma" não estava ainda fixo naquele tempo, não era ainda um termo com conotação estrita e exata. [Ver o valioso estudo por August Deneffe,S.J., Dogma.Wort und Begriff, em ‘Scholastic’, Jg.VI (1931), ss.381-400 e 505-538]. Em todo caso, não devemos ficar embaraçados pela afirmação de São Basílio de que as dogmatas foram entregues ou passadas pelos Apóstolos em mistirio (εν μυστηριω). Seria uma flagrante má tradução se nós entendêssemos como "em segredo." A única tradução acurada é: "por meio de mistérios," isto é — sob a forma de ritos e usos litúrgicos ou "hábitos." De fato, isso é precisamente o que o próprio São Basílio diz: τα πλειτα των μυστικων αγραφως ημιν εμπολιτευεται [A maioria dos mistérios nos foram comunicados por meio não-escrito]. O termo ta mistica (τα μυστικα) refere-se aqui, obviamente, aos ritos do Batismo e Eucaristia, que são, para São Basílio, de origem "Apostólica." Ele cita, nesse ponto, a própria referência de São Paulo a "tradições," que os fiéis devem ter recebido (ειτε δια λογου ειτε δι επιστολης 2 Thess. 2:15; 1 Cor. 11:2). A doxologia em questão é uma dessas tradições (71; cf. também 66)—οι τα περι τας Εκκλησιας εξαρχης διαθεσμοθετησαντες αποστολοι και πατερες, εν τω κεκρυμμενω και αφθεγκτω το σεμνον τοις μυστηριοις εφυλασσον [Os Apóstolos e Padres que desde o início arranjaram tudo na Igreja, preservando o caráter sagrado dos mistérios em silêncio e em segredo]. Na verdade todas as instâncias citadas por São Basílio nessa conexão são de natureza ritual ou litúrgica: o uso do sinal da Cruz no rito de admissão dos Catecúmenos; a orientação para o Leste na oração; o hábito de ficar em pé nas orações de Domingos; a epiclesis no rito da Eucaristia; a benção da água e do óleo; a renúncia de Satan e sua pompa; a tripla imersão no rito do Batismo. Há vários outros "mistérios não-escritos da Igreja," diz São Basílio: τα αγραφα της εκκλησιας μυστηρια (c. 66 e 67). Eles não são mencionados nas Escrituras. Mas eles são de grande autoridade e significado. Eles são indispensáveis para preservação da fé correta. Eles são meios efetivos de testemunho e comunicação. De acordo com São Basílio, eles vêm de uma tradição "silenciosa"e "particular": απο της αδημοσιευτου και μυστικης παραδοσεως εκ της αδημοσιευτου ταυτης και απορρητου διδασκαλιας [Da silenciosa e mística tradição, do ensinamento não-público e inefável]. Essa "silenciosa" e "mística" tradição, "que não tinha se tornada pública," não é uma doutrina esotérica, reservada para alguma elite particular. A "elite" era a Igreja. De fato, a "tradição" para a qual São Basílio apela, é a prática litúrgica da Igreja. São Basílio está se referindo aqui ao que agora é citado como disciplina arcani [A disciplina do segredo]. No século quarto essa disciplina estava em grande uso, era formalmente imposta e advogada na Igreja. Ela estava relacionada à instituição do Catecumenato, e tinha primariamente um propósito educacional e didático. De outro, como São Basílio diz ele próprio, certas "tradições" têm que ser mantidas "não-escritas" para prevenir profanações nas mãos dos infiéis. Essa observação se refere aos ritos e usos. Deve ser lembrado nesse ponto que, na prática do século quarto, o Credo (e também a oração Dominical) eram parte dessa "disciplina de segredo" e não podiam ser abertos ao não-iniciados. O Credo era reservado para os candidatos ao Batismo, no último estágio de sua instrução, após eles terem sido solenemente listados e aprovados. O Credo era comunicado ou "tradicionalhado" para eles, pelo Bispo, oralmente e eles tinham que recitar de memória diante dele: a cerimônia de traditio e redditio symboli [Transmissão e Repetição (pelo iniciado) do Credo]. Os Catecúmenos eram instados fortemente a não divulgar o Credo para pessoas de fora da Igreja e a não comprometê-lo escrevendo-o. Ele tinha que estar escrito nos corações deles. É suficiente citar aqui a Procatechesis de São Cirilo de Jerusalém, caps.12 e 17. No Ocidente Rufino e Santo Agostinho sentiram que era impróprio colocar o Credo no papel. Por essa razão Somozem em sua História não cita o Credo de Nicéia, "que só os iniciados e mistagôgos têm o direito de recitar e ouvir" (Hist. Eccles. 1.20). É contra esse pano de fundo e esse contexto histórico, que o argumento de São Basílio deve ser visto e interpretado. São Basílio insiste fortemente na importância da profissão de fé Batismal que incluía um compromisso formal com a crença na Santíssima Trindade, Pai, Filho, e Espírito Santo (67 e 26). Era uma "tradição" que tinha sido dada aos neófitos "em mistério" e tinha que ser mantida "em silêncio." Estar-se-ia em grande perigo de abalar "as próprias bases da fé Cristã" — το στερεωμα της Χριστον πιστεως — se essa "tradição não-escrita" fosse posta de lado, ignorada ou negligenciada (c.25). A única diferença entre dogma (δογμα) e kirigma (κηρυγμα) era na maneira de sua transmissão: dogma é mantido "em silêncio" e kerigmata é "em público": το μεν γαρ σιωπαται, τα δε κηρυγματα δημοσειυονται. Mas sua intenção é idêntica: elas transportam a mesma fé, ainda que de maneiras diferentes. Além do mais, esse hábito particular não era só uma tradição dos Padres — tal tradição não teria sido suficiente: uk eksarki. De fato, os Padres derivaram seus "princípios" da "intenção das Escrituras" — τω βουληματι της Γραφης λαβοντες [Seguindo a intenção das Escrituras, derivando seus princípios dos testemunhos escriturais]. Assim, a "tradição não-escrita," em ritos e símbolos, não acrescenta, de fato, nada ao contexto da fé Escritural: ela só põe essa fé em foco. [Cf. Hermann Dörries, De Spiritu Sancto, Der Beitrag des Basilius zum Abschluss des trinitarischen Dogmas (Göttingen,1956); J.A.Jungmann, S.J., Die Stellung Christi im liturgischen Gebet,2. Auflage (Münster i/W, 1962) ss. 155ff.,163ff.; Dom David Amand, L’ascése monastique de Saint Basile, Editions de Maredsous (1949), pp.75-85. As notas de pé-de-página nas ediçõoes críticas do tratado De Spiritu Sancto por C.F.H.Johnson (Oxford, 1892) e por Benoit Pruche, O.P. (nas ‘Sources Chrètiennes’, Paris, 1945) são altamente instrutivas e úteis. Sobre disciplina arcani ver O.Perler, s.v.Arkandisciplin, em ‘Reallexicon für Antike Christentum’, Bd. I (Stuttgart, 1950), ss. 671-676; Joachim Jeremias, Die Abendmahlsworte Jesu (Göttingen, 1949) ss.59ff. 78ff., argumentando que disciplina arcani podia ser detectada já na formação dos textos dos Evangelhos, e que na verdade existia também no judaísmo, cf. forte crítica dessa tese por R.P.C. Hanson, Tradition in the Early Church ( Londres, 1962), pgs.27 e segs.].

O apelo de São Basílio à "tradição não-escrita" era, na verdade, um apelo à fé da Igreja, à seu sensus catholicus, à (φρονιμα εκκλησιατικον) fronima ekklisiatikon [Mente Eclesiástica]. Ele tinha que abrir o beco-sem-saida criado pelo obstinado e estreito de mente pseudo-escriturista de seus oponentes Arianos. E ele pleiteava que, à parte dessa "não-escrita" regra de fé, era impossível se entender a verdadeira intenção e ensinamento das próprias Escrituras. São Basílio era estritamente escritural em sua teologia: Escrituras eram para ele o critério supremo da doutrina (epist. 189.3). Sua exegese era sóbria e reservada. No entanto, as próprias Escrituras eram um mistério, um mistério da Divina "economia" e da salvação humana. Havia uma inescrutável profundidade nas Escrituras, desde que elas eram um livro "inspirado," um livro pelo Espírito. Por essa razão a verdadeira exegese tinha que ser também espiritual e profética. Um dom de discernimento espiritual era necessário para o entendimento correto da Santa Palavra. "Pois o juiz das palavras deve começar com a mesma preparação do autor...E eu vejo que nos pronunciamentos do Espírito é também impossível para qualquer um ter o escrutínio de Suas palavras, mas só para aqueles a quem o Espírito concede o discernimento" (epist.204). O Espírito é concedido nos sacramentos da Igreja. As Escrituras devem ser lidas à luz da fé, e também na comunidade dos fiéis. Por essa razão a Tradição, a tradição da fé como passada através das gerações, era para São Basílio um indispensável guia e companheiro no estudo e interpretação dos Santos Escritos. Nesse ponto ele estava seguindo os passos de São Irineu e Santo Atanásio. De modo similar a Tradição, e especialmente o testemunho litúrgico da Igreja, foram usados por Santo Agostinho [Cf. Greman Mártil, O.D., La tradición en San Agustín a través de la controvérsia pelagiana (Madrid, 1942) (originalmente na ‘Revista española de Teologia’, Vol.I,1940, e II 1942); Wunibald Roetzer, Des heiligen Augustinus Schriften als liturgie-geschichtliche Quelle (München, 1930): ver também os estudos de Federer eDom Capelle, citados acima ].

A Igreja como intérprete das Escrituras.

A Igreja tinha autoridade para interpretar as Escrituras, desde que ela era a única autentica depositária do kerygma Apostólico. Esse kerygma era mantido infalivelmente vivo na Igreja, já que ela estava dotada com o Espírito. A Igreja ainda estava ensinando viva voce, recomendando e promovendo a palavra de Deus. E viva vox Evangelii [a viva voz do Evangelho] na verdade, não era simplesmente uma recitação de palavras das Escrituras. Era uma proclamação da Palavra de Deus, como ela era ouvida e preservada na Igreja, pelo sempre presente poder do vivificante Espírito. Separada da Igreja e do seu Ministério regular, "em sucessão" aos Apóstolos, não havia proclamação verdadeira do Evangelho, nem pregação sadia, nem compreensão real da Palavra de Deus. E por isso seria vão procurar a verdade em outro lugar, fora da Igreja Católica Apostólica. Essa era a assunção comum da Igreja Antiga, de São Irineu até a Calcedônia e adiante. São Irineu era bastante formal nesse ponto. Na Igreja a totalidade da verdade tinha sido reunida pelos Apóstolos: plenissime in eam contulerint omnia quae sunt veritatis [depositadas em suas mãos copiosissimamente foram todas as coisas pertinentes à verdade (adv. Haeres., III.4.1)]. Na verdade, as Escrituras em si, eram a maior parte desse "depósito" Apostólico. Assim era também a Igreja. Escrituras e Igreja não podiam ser separadas, ou opostas uma à outra. As Escrituras, isto é — seu verdadeiro entendimento, somente na Igreja, já que ela estava guiada pelo Espírito. Orígenes insistia na unidade entre Escrituras e Igreja persistentemente. A tarefa do intérprete era descobrir a palavra do Espírito: hoc observare debemus ut non nostras, cum docemus, led Sancti Spiritus sententias proferamus [devemos ser cuidadosos quando nós ensinamos em apresentar não a nossa interpretação mas aquela, do Espírito Santo (in Rom. 1.3.1.)]. E isso era simplesmente impossível separado da Tradição Apostólica, mantida na Igreja. Orígenes insistia na interpretação católica das Escrituras, como era oferecida na Igreja: audiens in Ecclesia verbum Dei Catholice tractari [ouvindo na Igreja a Palavra de Deus apresentada na maneira católica (in Lev. Hom.,4.5.)]. Os heréticos, em sua exegese, ignoram precisamente a verdadeira "intenção" ou a voluntas das Escrituras: qui enim neque juxta voluntatem Scripturarum neque juxta fidei veritatem profert eloquia Dei, semina triticum et metit spinas [aqueles que apresentam as palavras de Deus, não em conjunção com a intenção das Escrituras, nem em conjunção com a verdade da fé, semearam trigo e colherão espinhos (in Jerem. Hom., 7.3)]. A intenção dos Santos Escritos e a "Regra de fé" estão intimamente relacionadas e corresponde uma à outra. Essa era a posição dos Padres no século quarto e depois, em plena concordância com o ensinamento dos Antigos. Com sua habitual afiação e veemência de expressão, São Jerônimo, esse grande homem das Escrituras, expressou a mesma opinião:

Marcion e Basilides e outros heréticos...não possuem o Evangelho de Deus, já que eles não têm o Espírito Santo, sem o Qual o Evangelho pregado se torna humano. Nos não pensamos que o Evangelho consiste nas palavras das Escrituras mas sim em seu significado; não na superfície mas no seu cerne, não nas folhas de sermões mas na raiz do entendimento. Nesse caso as Escrituras são realmente úteis para os ouvintes quando elas não são faladas sem Cristo, nem são apresentadas sem os Padres, e aqueles que estão pregando não as introduzem sem o Espírito...É um grande perigo falar na Igreja, porque por uma perversa interpretação do Evangelho de Cristo, torna-se um evangelho do homem (in Galat.,I, 1. II; M.L. XXVI, c.386).

Há a mesma preocupação com o verdadeiro entendimento da Palavra de Deus como nos dias de São Irineu, Tertuliano e Orígenes. São Jerônimo provavelmente estava simplesmente parafraseando Orígenes. Fora da Igreja não há "Evangelho Divino," mas somente substitutos humanos. O verdadeiro significado das Escrituras, o sensus Scripturae, isto é, a mensagem Divina, só pode ser detectada juxta fidei veritatem [em conjunção com a verdade da fé], sob a guia e regra da fé. A veritas fidei [a verdade da fé] é, nesse contexto, a confissão Trinitária da Fé. É a mesma aproximação que em São Basílio. De novo, São Jerônimo está falando aqui primariamente da proclamação da Palavra na Igreja: audientibus utilis est [útil para quem ouve].

Santo Agostinho e a Autoridade Católica.

No mesmo sentido nós temos que interpretar a bem conhecida e simplesmente surpreendente afirmativa de Santo Agostinho: "Ego vero Evangelio non crederem, ni si catholicae Ecclesiae commoveret auctoritas." [Na verdade, eu não teria acreditado no Evangelho, se a autoridade da Igreja Católica não tivesse me movido para tal (c. epistolam Fundamenti, v.6)]. A frase deve ser lida em seu contexto. Antes de tudo, Santo Agostinho não proferiu essa sentença por sua conta. Ela falava da atitude que um simples fiel deveria tomar, quando confrontado com a exigência herética da autoridade. Nessa situação era apropriado para um simples fiel apelar para a autoridade da Igreja, da qual e na qual, ele tinha recebido o próprio Evangelho; ipsi Evangelio catholicis praedicantibus credidi [Eu acreditei no Evangelho, sendo instruído por pregadores católicos]. O Evangelho e a pregação da Catholica permanecem juntos. Santo Agostinho não tinha a intenção de "subordinar" o Evangelho à Igreja. Ele só queria enfatizar que o "Evangelho" é realmente recebido sempre no contexto da pregação católica da Igreja e simplesmente não pode ser separado da Igreja. Somente nesse contexto ele pode ser acessado e entendido apropriadamente. Na verdade, o testemunho das Escrituras é definitivamente "auto-evidente," mas só para os "fiéis," para aqueles que adquiriram uma certa maturidade "espiritual" — e isso somente é possível dentro da Igreja. Ele opunha a auctoritas desse ensinamento e pregação da Igreja Católica às pretensiosas extravagâncias da exegese Maniqueana. O Evangelho não pertencia aos Maniqueus. Catholicae Ecclesiae auctoritas [Autoridade da Igreja Católica] não era uma fonte independente de fé. Mas era o princípio indispensável de uma interpretação sadia. Realmente, a sentença pode ser mudada: não se deveria acreditar na Igreja, a menos de ser movido pelo Evangelho. A relação é estritamente recíproca (Cf. Louis de Montandon, Bible et Eglise dans l’Apologétique de Saint Augustín, nas ‘Recherches de Science réligieuse’,t. II (1911), pgs.233-238; Pierre Battiffol, Le Catholicisme de Saint Augustin,5° ed. (Paris, 1929), pgs. 25-27 ( ver todo capítulo I, L’Eglise règle de foi; e especialmente A.D.R.Polman, The World of God according Saint Augustine (Grand Rapids, Michigan, 1961), pgs.198-208 ( é uma edição revisada do livro publicado em holandez em 1955-De Theologie van Augustinus, Het Woord Gods bij Augustinus); ver também W.F.Dankbaar, Schriftgezag en Kerkgezag bij Augustinus, na ‘Nederlands Theologisch Tijdschrift’, XI (1956-1957), ss.37-59 (esse artigo foi escrito em conexão com a edição holandeza do livro de Polman)].

 

A autoridade dos Antigos Concílios

e a Tradição dos Padres.

 

Os Concílios na Igreja Antiga.

O escopo desse ensaio é limitado e restrito. Não é mais do que uma introdução. Ambos os assuntos — o papel dos Concílios na história da Igreja e a função da Tradição — têm sido estudados intensivamente em anos recentes. O propósito do presente ensaio é de oferecer algumas sugestões que poderão se provar úteis no futuro escrutínio de evidência documentária e em sua assessoria e interpretação teológica. Na verdade, o problema definitivo é eclesiológico. Historiador da Igreja é também inevitavelmente teólogo. Ele é conduzido a trazer suas opiniões pessoais e comprometimentos. De outro lado, é imperativo que os teólogos também estejam conscientes daquela ampla perspectiva histórica na qual, matérias de fé e doutrina têm sido continuamente discutidas e compreendidas. Linguagem anacrônica deve ser cuidadosamente evitada. Cada época deve ser discutida em seus próprios termos.

O estudante de Igreja Antiga deve começar com o estudo de Concílios particulares, tomados em suas colocações históricas concretas, contra seu específico pano-de-fundo existencial, sem tentar qualquer definição abrangente de saída. Na verdade, é precisamente isso que os historiadores estão fazendo. Não há "teologia Conciliar" na Igreja Antiga, nem elaborada "teologia dos Concílios," e nem mesmo regulamentos canônicos fixos. Os Concílios da Igreja Antiga, nos três primeiros séculos, foram encontros ocasionais, reunidos para propósitos especiais, usualmente em situação de urgência, para discutir itens particulares de preocupação geral. Eles foram eventos, mais do que uma instituição. Ou, para usar a frase do posterior Dom Gregório X, "nos tempos pré Nicenos os Concílios eram um dispositivo ocasional, sem lugar certo no esquema de governo da Igreja [Dom Gregório X, "Jurisdiction, Episcopal and Papal in the Early Church," Laudate, XVI (Nº 62, Junho 1938), 108]. Por certo, era comumente assumido e concordado, já naquele tempo, que encontros e consultas de Bispos,representando ou melhor personificando suas respectivas igrejas locais ou "comunidades," eram um meio apropriado e normal de adquirir e manifestar a unidade e consenso em matérias de fé e disciplina. O sentido de Unidade da Igreja era forte nos tempos Antigos, apesar de isso ainda não ter se refletido no nível organizacional. A "colegialidade" dos bispos era assumida em princípio e o conceito da Episcopatus unus estava já em processo de formação. Bispos de uma determinada área costumavam se encontrar para a eleição e consagração de novos Bispos. As bases tinham sido preparadas para o futuro sistema Provincial ou de Metropolitas. Mas tudo isso era mais um movimento espontâneo. Parece que os "Concílios" vieram a existir primeiro na Ásia Menor, lá pelo fim do segundo século, no período da defesa intensiva contra o espalhamento da "Nova Profecia," isto é, da entusiástica explosão do Montanismo. Nessa situação era mais do que natural que a principal ênfase fosse posta na "Tradição Apostólica," da qual os Bispos eram os guardiões e testemunhas em suas respectivas paroikiai. Foi no norte da África que uma espécie de sistema Conciliar foi estabelecido no século terceiro. Foi descoberto que os Concílios eram o melhor dispositivo para testemunhar, articular e proclamar a mente comum da Igreja, e a concordância e unanimidade das igrejas locais. O Professor Georg Kretschmar disse corretamente, em seu recente estudo dos Concílios da Igreja Antiga, que a preocupação básica dos primeiros Concílios era precisamente com a Unidade da Igreja: "Schon von ihrem Ursprung her ist ihr eigentliches Thema aber das Ringen um die rechte, geistliche Einheit der Kirche Gottes" [Georg Kretschmar, "Die Konzile der Alten Kirche," in Die ökumenischen Konzile der Christenheit, hg. V. H.J.Margull, (Stuttgart, 1961), p.1]. Porém essa Unidade era baseada na identidade da Tradição e na unanimidade da fé, mas do que em qualquer outro padrão institucional.

Os Concílios Imperiais ou Ecumênicos.

A situação mudou com a conversão do Império. Desde Constantino, ou melhor, desde Teodósio, era assumido e reconhecido que a Igreja era co-extensiva com a "Comunidade," isto é, com o Império Universal que tinha sido cristianizado. A "Conversão do Império" tornou a Universalidade da Igreja mais visível do que nunca. Por certo, ela não adicionou nada à essencial e intrínseca Universalidade da Igreja Cristã. Mas criou nova oportunidade para suas manifestações visíveis. Foi nessa situação que o primeiro Concílio Geral foi reunido, o Grande Concílio de Nicéia. Era para ele se tornar o modelo para os Concílios posteriores. "A nova posição estabelecida da Igreja necessitava de ação ecumênica, precisamente porque a vida Cristã passou a ser vivida no mundo, que não era mais organizado na base de localismos, mas no Império como um todo...Porque a Igreja tinha vindo para o mundo, as igrejas locais tinham que aprender a viver não mais como unidades autocontidas (como na prática, apesar de não em teoria, elas tinham vivido largamente no passado) mas como partes de um vasto governo espiritual. (Dom Gregório X. op. cit., p.133). Num certo sentido os Concílios Gerais como inaugurados em Nicéia" podem ser descritos como "Concílios Imperiais," die ReichsKonzile, e esse foi provavelmente o primeiro e original significado do termo "Ecumênico" como aplicado aos Concílios (ver Eduard Schwartz, "Über die Reichskonzilien von Theodosius bis Justinian" (1921), reimpresso em seu Gesammelte Schriften, IV (Berlin, 1960),pgs. 111-158). Seria fora de lugar agora discutir em qualquer extensão o problema controverso e vexatório da natureza ou caráter daquela estrutura peculiar que era a nova Comunidade Cristã, a teocrática Res publica Christiana, na qual a Igreja estava estranhamente "soldada" com o Império [Cf. meu artigo, "Empire and Desert: Antinomies of Christian History," The Orthodox Theological Review, III (N° 2, 1957), 133-159]. Para nosso propósito imediato é irrelevante. Os Concílios do século quarto ainda eram encontros ocasionais, ou eventos individuais, e, sua autoridade definitiva estava ainda baseada em sua conformidade com a "Tradição Apostólica." É interessante notar que não houve tentativa de desenvolver uma teoria legal ou canônica dos "Concílios Gerais," como uma sé com autoridade definitiva, com competência específica e modelos de procedimentos, nem no século quarto nem depois, apesar deles serem de facto reconhecidos como uma instância apropriada para tratar de fé e doutrina e como uma autoridade nesses assuntos. Não seria exagero sugerir que os Concílios nunca foram vistos como uma instituição canônica, mas mais como ocasionais eventos carismáticos. Concílios não eram vistos como encontros periódicos que tinham que ser reunidos em certas datas fixas. E nenhum Concílio foi aceito de antemão, e muitos Concílios foram desconsiderados, apesar de sua regularidade formal. É suficiente mencionar o notório Concílio de Ladrões de 449. Na verdade, esses Concílios que foram realmente reconhecidos como "Ecumênicos," no sentido de sua autoridade obrigatória e infalível, eram reconhecidos, imediatamente ou depois de um tempo, não por causa da sua competência canônica formal, mas por conta do seu caráter carismático: sob a condução do Espírito Santo eles tinham testemunhado a Verdade, em conformidade com as Escrituras como passadas pela Tradição Apostólica [ver V.V.Bolotov, Lectures on the History of the Ancient Church, III (1913), pgs.320 e segs. (Russo), e suas Letters to A..A .Kireev, ed. por D..N. Jakshich (1931), pgs.31 e segs. (Russo); também A.P.Dobroklonsky, "The Ecumenical Councils of the Orthodox Church . Their Structure," Bogoslovje, XI (2&3, 1936), 163-172 e 276-287 (Sérvio)]. Não há espaço aqui para discutir a teoria de recepção. De fato, não havia teoria. Havia simplesmente uma intuição em matérias de fé. Hans Küng, em seu livro recente, Strukturen der Kirche, sugeriu um caminho útil de aproximação para esse problema. Na verdade, Dr. Küng não é um historiador, mas seu esquema teológico pode ser aplicado proveitosamente pelos historiadores. Küng sugeriu que nós deveríamos olhar a própria Igreja como um "Concílio," uma Assembléia, e como um Concílio convocado pelo próprio Deus, aus göttlicher Berufung, e os Concílios históricos, isto é, os Concílios Ecumênicos ou Gerais, como Concílios aus menschlicher Berufung, como uma "representação" da Igreja — na verdade, "uma representação verdadeira" — mas ainda assim não mais do que uma representação [Hans Küng, Strukturen der Kirche, 1962, pgs. 11-74]. É interessante notar que uma concepção similar já tinha sido feita muitos anos antes pelo grande historiador da Igreja Russa, V.V.Bolotov, em sua Lectures on the History of the Ancient Church. Igreja é ecclesia, uma assembléia, que nunca é interrompida [Bolotov,Lectures, I (1907) pgs. 9-14]. Em outras palavras, a autoridade definitiva — e a habilidade para discernir a verdade na fé — é investida na Igreja que é na verdade uma "instituição Divina," no sentido próprio e estrito da palavra, já que nenhum Concílio, e nenhuma "instituição Conciliar," é de jure Divino, exceto quando acontece ser o Concílio uma imagem verdadeira ou manifestação da própria Igreja. Pode parecer que estamos aqui envolvidos num círculo vicioso. Podemos, de fato, estarmos envolvidos nele, se insistirmos em garantias formais em matérias doutrinais. Mas, obviamente, tais "garantias" não existem e não podem ser produzidas, especialmente de antemão. Certos "Concílios" foram, de fato, falhos, não mais do que conciliabula, e erraram. E, por essa razão eles foram subseqüentemente desautorizados. A história dos Concílios no quarto século é, a esse respeito, muito instrutiva [Cf. Monald Goemans, O.F.M., Het algemeene Concilie in de vierde eeuw (Nijmegen-Utrecht,1945)]. As decisões dos Concílios eram aceitas ou rejeitadas na Igreja não numa base formal ou orgânica. E o veredicto da Igreja tem sido altamente seletivo. O Concilio não está acima da Igreja; Essa era a atitude da Igreja Antiga. O Concílio é precisamente uma "representação." Isso explica porque a Igreja Antiga nunca apelou para a "autoridade Conciliar" em geral ou in abstracto, mas sempre para Concílios particulares, ou melhor para a "fé" e testemunho deles. Padre Yves Congar publicou um excelente artigo sobre a "Primazia dos primeiros quatro Concílios Ecumênicos," e a evidência que ele coletou é altamente instrutiva ["Primauté des quatre premiers conciles oecuméniques," Le Concile et les Conciles, Contribuition à l’histoire de la vie conciliaive de l’Eglise (1960), p. 75-109]. De fato, foi precisamente a prioridade normativa de Nicéia, Éfeso e Calcedônia, isto é, de suas decisões dogmáticas, que eram sentidas como sendo uma fiel e adequada expressão do perene compromisso da fé que uma vez foi entregue à Igreja. De novo a ênfase não estava tanto na autoridade canônica," mas na verdade. Ela conduziu ao problema mais intrincado e crucial — qual é o critério definitivo da Verdade Cristã?

 

Cristo: o critério da verdade.

Não há resposta fácil para essa pergunta. Ou melhor, há uma resposta muito simples — Cristo é a verdade. A fonte e o critério da Verdade Cristã é a Divina Revelação, em sua dupla estrutura, em sua dupla dispensação. A fonte da Verdade é a Palavra de Deus. Agora, essa resposta era dada rapidamente e aceita comumente na Igreja Antiga, como ela pode ser aceita agradecidamente também pelo dividido Cristianismo de nossos dias. Entretanto, essa resposta não resolve o problema. De fato, ela tem sido variadamente acessada e interpretada até o ponto das mais radicais divergências. Ela só significa que o problema foi, na verdade, empurrado um passo à frente. Uma nova questão chegou para ser resolvida. Como era para a revelação ser entendida? A Igreja Antiga não tinha dúvida a respeito da "suficiência" das Escrituras, e nunca tentou ir além, e sempre afirmou não ter ido adiante. Mas já, no próprio período Apostólico, o problema da "interpretação" surgiu em toda sua desafiadora agudeza. Qual era o princípio hermenêutico orientador? Nesse ponto não havia outra resposta que o apelo à "fé da Igreja," fé e kerygma dos Apóstolos, a Apostólica paradosis. As Escrituras só poderiam ser compreendidas dentro da Igreja, como Orígenes insistiu fortemente, e São Irineu e Tertuliano insistiram antes dele. O apelo à Tradição era realmente um apelo à mente da Igreja, a seu phronema. Era um método de descobrir e verificar a fé como ela tinha sido sempre mantida, desde o seu início: semper creditum. A permanência da crença Cristã era o mais visível sinal e indício dessa verdade: nenhuma inovação [para mais discussão sobre esse tópico ver meus artigos: " The Function of Tradition in Ancient Church," The Greek Orthodox Theological Review, IX (N°2, 1964), 181-200, e "Scripture and Tradition: An Orthodox point of view," Dialog II ( N° 4, 1963), 288-293. Cf. também "Revelation and Interpretation," em Biblical Authority for Today, editado por Alan Richardson e W. Schweitzer (London and Philadelfia, 1951),pgs.163-180]. E essa permanência da fé da Santa Igreja podia ser apropriadamente demonstrada pelos testemunhos do passado. Era por essa razão, e para esse propósito, que "os antigos," i palei (οι παλαιοι), eram usualmente invocados e citados em discussões teológicas. Esse "argumento da Antigüidade," tinha, no entanto, que ser usado com certa cautela. Referências ocasionais a tempos antigos e citações casuais de velhos autores poderiam, com freqüência, serem ambíguas e até mesmo desorientadoras. Isso já era bem compreendido desde os dias da grande controvérsia Batismal, no século terceiro, e a questão sobre a validade e autoridade dos "velhos costumes," já tinha sido formalmente levantada naquele tempo. Já Tertuliano argumentava que consuetudines (costumes) na Igreja tinham que ser examinados à luz da Verdade : Dominus noster Christus veritatem se, non consuetudinem, cognominavit [Conhecer Nosso Senhor Cristo é a verdade, não costumes; de Virginibus velandis, I.I.]. A frase foi pega por São Cipriano e foi adotada pelo Concílio de Cartago em 256. De fato, "antigüidade" como tal poderia vir a ser não mais do que um inveterado erro: nam antiquitas sine veritatevetustas erroris est [pois antigüidade sem verdade é um erro antigo], na frase de São Cipriano (epist.74.9). Santo Agostinho também usou a mesma frase: In Evangelio Dominus, Ego sum, inquit veritas, non dixit ego sum consuetudo [No Evangelho o Senhor diz Eu sou a verdade, não diz Eu sou o costume; de Baptismo, III. 6.9.]. "Antigüidade" como tal não era necessariamente a verdade, apesar da verdade Cristã ser intrinsecamente uma verdade "antiga," e "inovações" na Igreja enfrentarem resistência. De outro lado, o argumento "de tradição" foi usado antes pelos heréticos, por Gnósticos, e foi esse uso deles que induziu São Irineu a elaborar seu próprio conceito de Tradição — em oposição às falsas "tradições" dos heréticos que eram estranhas à mente da Igreja [Ver B.Reynders, "Paradosis, le progrès de l’idée de tradition jusqu’à Saint Irénée," ibidem, VII (1935), 5-27]. O apelo à "antigüidade" ou "tradições" tinha que ser seletivo e bem discriminado. Certas "tradições" alegadas eram simplesmente erradas ou falsas. Tinha-se que detectar e identificar a "verdadeira Tradição," a Tradição autentica que podia ser rastreada até a autoridade dos Apóstolos e ter sido atestada e confirmada por um consensio universal das Igrejas. De fato, no entanto, esse consensio não podia ser facilmente descoberto. Certas questões ainda estavam em aberto. O principal critério de São Irineu estava válido: Tradição — Apostólica e Católica (ou Universal). Orígenes, no prefácio de seu De Principiis, tentou descrever o escopo do "acordo" existente que era em sua cabeça obrigatório e restritivo, e então ele citou uma série de tópicos importantes que teriam que ser explorados depois. Existiam, de novo, uma variedade considerável de tradições locais, em língua e disciplina, mesmo dentro da intacta comunhão em fé e in sacris. É suficiente lembrar nesse ponto a controvérsia Pascal entre Roma e o Oriente, na qual toda questão da autoridade dos antigos hábitos veio à baila. Também devemos lembrar dos conflitos entre Cartago e Roma, e entre Roma e Alexandria, no século terceiro, e a crescente tensão entre Alexandria e Antioquia que resultou no seu trágico clímax e impasse, no século quinto. Agora, nesse período de intensa controvérsia e discussão teológica, todos os grupos participantes costumavam apelar para tradição e "antigüidade." "Seqüência" de antigos testemunhos era compilada por todos os lados em disputa. Esses testemunhos tinham que ser cuidadosamente escrutinizados e examinados numa base mais abrangente do que somente "antigüidade." Certas tradições locais, litúrgicas e teológicas, eram finalmente descartadas e desautorizadas pela autoridade mais ampla de um consensus "ecumênico." Uma aguda confrontação de diversas tradições teológicas teve lugar já no Concílio de Éfeso. O Concílio foi, na verdade, dividido em dois — o Concílio "Ecumênico" de São Cirilo e Roma e o conciliabulum do Oriente. A reconciliação foi de fato conseguida, mas no entanto continuou a existir tensão. A mais espetacular instância de condenação de uma tradição teológica, de longa duração e considerável renome, ainda que local, foi, com certeza, o dramático assunto dos Três Capítulos. Nesse ponto uma questão de princípio tinha sido levantada: até que ponto era imparcial e legítimo negar a fé daqueles que tinham morrido em paz e comunhão com a Igreja? Houve um violento debate sobre esse assunto, especialmente no Ocidente, e fortes argumentos foram produzidos contra tal discriminação retrospectiva. Apesar disso, os Capítulos foram condenados pelo Quinto Concílio Ecumênico. "Antigüidade" foi derrotada pelo consensio Ecumênico, apesar de desmedido como provavelmente foi.

O significado do apelo aos Padres.

Tem sido corretamente observado que o apelo a "antigüidade" foi mudando sua função e característica com o passar do tempo. O passado Apostólico estava ainda à mão, e dentro do alcance da memória humana, nos tempos de São Irineu e Tertuliano. Na verdade, São Irineu tinha ouvido em sua juventude as instruções orais de São Policarpo, o discípulo imediato de São João o Divino. Era só a terceira geração depois de Cristo! A memória da era Apostólica estava ainda fresca. O escopo da história Cristã era breve e limitado. A maior preocupação desse primeiro período era com as bases "Apostólicas," com a entrega inicial do kerygma. Coerentemente, Tradição significava naquele tempo, primariamente, a "entrega" ou "deposição" original. A questão de transmissão acurada, por um pouco mais que um século, era comparativamente simples, especialmente nas Igrejas fundadas pelos próprios Apóstolos. Toda a atenção era dada, seguramente, para as listas de sucessão episcopal (Cf. Santo Irineu de Hegesippus), mas não era difícil compilar essas listas. A questão da "sucessão," no entanto, pareceu ficar muito mais complicada para as gerações subseqüentes, mais afastadas dos tempos Apostólicos. Era mais do que natural, sob essas novas circunstâncias, que a ênfase fosse deslocada da questão da "Apostolicidade" inicial para o problema da preservação do "depósito." Tradição veio a significar "transmissão," ao invés de "entrega." A questão das ligações intermediárias, de "sucessão" — no amplo e compreensivo sentido da palavra — tornou-se extremamente urgente. Era o problema do testemunho fiel. Foi nessa situação que a autoridade dos Padres foi formalmente invocada: eles eram testemunhas da permanência ou identidade do kerygma, como transmitido de geração em geração (Cf. P.Smulders, "Le mot t le concept de tradition chez les Pères," Recherches de Science Religieuse, 40 (1952), 41-62, e Yves Congar, La Tradition et les traditions, Etude historique (Paris 1960),p.57 e segs). Apóstolos e Padres — esses dois termos eram geral e comumente usados juntos nas discussões de Tradição, no correr dos séculos terceiro e quarto. Era essa dupla referência, à origem e à preservação sem falhas e contínua, que garantia a autenticidade da crença. De outro lado, as Escrituras eram formalmente aceitas e reconhecidas como a base da fé, como a Palavra de Deus e os Escritos do Espírito. Entretanto, existia ainda o problema da interpretação correta e adequada. Escrituras e Padres eram usualmente citados juntos, isto é, kerygma e exegese, i grafi ke i pateres (η γραφη και οι πατερες).

A referência, ou mesmo um apelo direto "aos Padres" era uma nota destacada e saliente da pesquisa e discussão teológica no período dos grandes Concílios Gerais ou Ecumênicos, começando com o de Nicéia. O termo nunca foi formalmente definido. Ele era usado, ocasional e esporadicamente, já pelos primeiros escritores eclesiásticos. Com freqüência ele denotava professores e líderes Cristãos de gerações anteriores. Ele foi gradualmente se tornando um título para os bispos assim que eles fossem apontados professores e testemunhas da fé. Mais tarde ele foi aplicado especificamente para bispos em Concílios. O elemento comum em todos esses casos era o cargo ou tarefa de ensinamento. "Padres" eram aqueles que transmitiam e propagavam a doutrina correta, o ensinamento dos Apóstolos, e que eram guias e mestres em instrução e catequese Cristã. Nesse sentido ele era enfaticamente aplicado para grandes Escritores Cristãos. Deve-se manter em mente que o principal, se não também o único, manual de fé e doutrina era, na Igreja Antiga, precisamente os Santos Escritos. E por essa razão os renomados intérpretes das Escrituras eram vistos como "Padres" num sentido eminente. [ver, primeiro de todos J.Fessler, Institutiones Patrologiae, denuo recensuit, auxit, edit B.Jungmann,I (Innsbruck, 1890), pgs. 15-57; E.Amann, "Pères de l’eglise," Dictionnaire de Theologie Catholique, XII, cc.1192-1215; Basilius Steidle, O.S.B., "Heilige Vaterschaft," Benedictinische Monatsschrift, XIV (1932),215-216; "Unsere Kirchenväter," ibidem, 387-398 e 454-466]. "Padres" eram professores, antes de tudo — doctores, didaskali (διδασκαλοι). E eles eram professores contanto que fossem testemunhas, testes. Essas duas funções devem ser distintas, e ainda assim elas são intimamente interligadas. "Ensinar" era uma tarefa Apostólica ; "ensinando a todas as nações." E era nesse comissionamento que a "autoridade" deles estava enraizada: era, de fato, a autoridade para dar testemunho. Dois pontos principais devem ser mencionados em relação a esse respeito. Primeiro, a frase "os Padres da Igreja" era certamente um óbvio acento restritivo: eles estavam agindo não simplesmente como indivíduos, mas sim como viri ecclesiastici (a expressão favorita de Orígenes), por conta e em nome da Igreja. Eles eram porta-vozes da Igreja, expositores da fé dela, mantenedores da Tradição, testemunhas da verdade e da fé — magistri probabiles, na frase de São Vicente. E nisso estava fundamentada a "autoridade" deles [Cf. Basilius Steidle, Patrologia (Friburgi Brisg., 1937), p.9 :qui saltem aliquo tempore per vinculum fidei et caritatis Ecclesiae adhaeserunt testesque sunt veritatis catholicae]. O que nos conduz de volta ao conceito de "representação." O posterior G.L.Prestige observou muito bem:

Os credos da Igreja cresceram do ensinamento da Igreja: o efeito geral das heresias foi mais forçar os antigos credos a serem apertados do que fazer com que credos novos fossem construídos. Assim o mais famoso e mais crucial de todos os credos, o de Nicéia, era somente uma nova edição de uma existente confissão Palestina. E um fato muito mais importante deve ser sempre lembrado. O real trabalho intelectual, o vital pensamento interpretativo, não foi contribuído pelos Concílios que promulgaram os credos, mas sim pelos professores teólogos que supriram e explicaram a fórmula que os Concílios adotaram. O ensinamento de Nicéia, que finalmente o recomendou, representou as visões de gigantes trabalhando por cem anos antes e cinqüenta anos depois da verdadeira reunião do Concílio (G.L.Prestige, Fathers and Heretics (London, 1940), pg.8: os itálicos são meus).

Os Padres eram verdadeiros inspiradores dos Concílios, estando presentes ou ausentes, e até mesmo depois de terem ido para o Descanso Eterno. Por essa razão, e nesse sentido, os Concílios costumavam enfatizar que eles estavam "seguindo os Santos Padres" (επομενοι τοις αγιος πατρασιν), como Calcedônia disse. Segundo, foi precisamente o consensus patrum que foi autoritativo e obrigatório, e não suas opiniões ou visões particulares, apesar de nem mesmo elas poderem ser apressadamente dispensadas. De novo, esse consensus era muito mais do que simplesmente um acordo empírico de indivíduos. O verdadeiro e autêntico consensus era aquele que refletia a mente da Igreja Católica e Universal — to ekklesiastikon fronima (το εκκλησιοστικον φρονημα) [ver Eusebius, Hist. Eccl.,V. 28.6, citando um tratado anônimo, Against the heresy of Artemon, do século terceiro. A atribuição desse tratado a Hipólito é duvidosa]. Era esse tipo de consensus ao qual se referia São Irineu quando ele argumentava que nem uma "habilidade" especial, nem uma "deficiência em falar de líderes individuais nas Igrejas poderia afetar a identidade de seus testemunhos, já que o "poder da tradição" — virtus traditionis — era sempre e em todo lugar o mesmo (Adv. Haeres. I.10.2). A pregação da Igreja era sempre idêntica: constans et aequaliter perseverans (ibid., III.24.1). O verdadeiro consenso é aquele que manifesta e descobre essa perene identidade da fé da Igreja —aequaliter perseverans.

[ver meu artigo "Offenbarung, Philosophie und Theologie," Zwischen den Zeiten, IX (1931), pgs. 463-480. —Cf. Karl Adam, Christus unser Bruder (1926), pg.116 e segs: Der konservative Traditionsgeist der Kirche fliesst unmittelbar aus ihrer christozentrischen Grundhalt. Von dieser Grundstellung aus wandte sich die Kierche von jeher gegen die Tyrannie von Führer persönlichkeiten, von Schulen das christliche Bewunsstsein, die überlieferte Botschaft von Christus, getrübt oder bedroht schien, da zögerte sie nicht, selbst über ihre grössten Söhne hinwegzuschreiten, über einen Origenes, Augustin, ja—hier und dort—selbst über einen Thomas von Aquin. Und überal da, wo grundsätzlich nicht die Überlieferung, nicht das Feststehen auf dem Boden der Geschicht, der urchristlichen Gegebenheit, der lebendigen fortdauernden Gemeinschaft, sondern die eigene Spekulation und das eigene kleine Erlebnis und das eigene arme Ich zum Träge des Christusbotschaft gemacht werden sollte, da sprach sie umgehend ihr Anathema aus...Die Geschichte der kirchlichen Verkündigung ist nicht anderes als ein zähes Festhalten an Christus, eine folgestrenge Durchführung des Gebotes Christi: Nur einer sei eurer Lehre, Christus.—Na verdade, esse patética passagem é quase uma parafrase do último capítulo do (primeiro) Commonitorium de São Vicente, no qual ele claramente separa entre a mente comum e universal da Igreja e as privatae opiniunculae dos indivíduos: quidquid vero, quamquis ille sanctus et doctus, quamvis episcopus, quamvis confessor et martyr, praeter omnes aut etam contra omnes senserit (cap.XXVII)].

A "autoridade" de ensinar dos Concílios Ecumênicos está baseada na infalibilidade da Igreja. A "autoridade" definitiva está investida na Igreja que é para sempre o Pilar e a Base da Fé. Não é primariamente uma autoridade canônica, no sentido formal e específico do termo, apesar de restrições e sanções canônicas poderem ser apensas a decisões conciliares em matérias de fé. É uma autoridade "carismática," baseada na assistência do Espírito: pois pareceu bom ao Espírito Santo, e a nós.

 

 

Revelação, Filosofia e Teologia.

Esse artigo apareceu originalmente como "Offenbarung, Philosophie und Theologie em Zwischen den Zeiten, Heft 6 (München, 1931). Traduzido do Alemão por Richard Haugh.

 

 

I. Revelação.

Existem dois aspectos do conhecimento religioso: Revelação e Experiência. Revelação é a voz de Deus falando para o homem. E o homem ouve essa voz, presta atenção nela, aceita a Palavra de Deus e a entende. É precisamente para esse propósito que Deus fala; e o homem deveria ouvi-Lo. Por Revelação no sentido apropriado, nós entendemos exatamente essa palavra de Deus como ela é ouvida. As Santas Escrituras são o registro escrito da Revelação que foi ouvida. E se alguém, de qualquer maneira, deve interpretar o caráter inspirado das Escrituras, ele deve reconhecer que elas preservam para nós e apresentam para nós a voz de Deus na linguagem do homem. Elas apresentam para nós as palavras de Deus simplesmente como elas ressoam na alma receptiva do homem. Revelação é teofania. Deus desceu para o homem e revelou-Se para ele. E o homem vê e contempla Deus. E ele descreve o que ele vê e ouve; ele testemunha o que foi revelado para ele. O grande mistério e milagre das Escrituras consistem no fato que nelas está a Palavra de Deus na linguagem do homem.

Muito apropriadamente os primeiros exegetas Cristãos viram no Velho Testamento uma antecipação e protótipo da Encarnação de Deus. Já no Velho Testamento a palavra de Deus torna-se humana. Deus fala com a linguagem do homem. Isso constitui o autêntico antropomorfismo da Revelação. Esse antropomorfismo não é no entanto meramente uma acomodação. A linguagem humana, de maneira nenhuma, reduz o caráter absoluto da Revelação, nem limita o poder da "Palavra" de Deus. A Palavra de Deus pode ser expressa precisa e adequadamente na linguagem do homem. Pois o homem foi criado à imagem de Deus. É precisamente por essa razão que o homem é capaz de perceber Deus, de receber a Palavra de Deus e de preservá-la. A Palavra de Deus não é diminuída enquanto soa em linguagem humana. Ao contrário, a palavra humana é transformada e, como se fosse,transfigurada pelo fato de ter agradado a Deus falar em linguagem humana. O homem é capaz de ouvir Deus, de agarrar, receber e preservar a Palavra de Deus. Em todo caso, as Santas Escrituras não falam só de Deus, mas também do homem. Assim a Revelação histórica completa-se exatamente na aparência do Deus-Homem. Não só no Velho mas também no Novo Testamento nós vemos não só Deus, mas também o homem. Nós apreendemos Deus em Ele se aproximando e aparecendo ao homem; e nós vemos pessoas humanas quando encontramos Deus e ouvimos atentamente Sua Palavra .— e, o que é mais, respondemos a Suas Palavras.

Nós ouvimos nas Escrituras também a voz do homem, respondendo a Deus em palavras de orações de agradecimento ou de louvor. Em relação a isso é suficiente mencionar os Salmos. E Deus deseja, espera e requer essa resposta. Deus deseja que o homem não só ouça Suas palavras mas também responda a elas. Deus quer envolver o homem em uma "conversa." Deus desceu para o homem — e Ele desceu para elevar o homem para Ele. Nas Escrituras o que é surpreendente, acima de tudo, é a íntima proximidade de Deus com o homem e do homem com Deus, essa santificação de toda a vida humana pela presença de Deus, essa cobertura da terra com a Divina proteção.

Nas Escrituras nós ficamos surpresos pelo fato da história sagrada em si. Nas Escrituras é revelado que a própria história torna-se sagrada, que a história pode ser consagrada, que a vida pode ser santificada. E, certamente, não só no sentido de uma iluminação externa da vida — como se fosse de fora — mas também no sentido de sua transfiguração. Porque a Revelação é, de fato, completada com a fundação da Igreja e com a descida do Espírito Santo no mundo. Desde aquele tempo o Espírito de Deus habita no mundo. De repente a fonte da vida eterna se estabelece no mundo. E a Revelação será consumada com o aparecimento de um novo céu e uma nova terra, com a transformação cósmica e universal de toda a existência criada. Pode-se sugerir que a Revelação é o caminho de Deus na história — nós vemos como Deus anda entre os homens. Nós contemplamos Deus não só na transcendente majestade de Sua glória e onipotência mas também em amorosa proximidade de Sua criação. Deus revela-Se a nós não somente como o Senhor e Pantocrator mas, acima de tudo, como Pai. E o fato principal é que a Revelação escrita é história, a história do mundo como a criação de Deus. A Revelação começa com a criação do mundo e fecha com a promessa de uma nova criação. E sente-se a tensão dinâmica entre esses dois momentos, entre o primeiro divino "fiat" e o que virá: "Eis que faço novas todas as coisas" (idu kena pio panta, ιδου καινα ποιω παντα Revelação 21:5).

Esse não é o lugar para tratar em detalhes das questões básicas da exegese das Escrituras. Apesar disso devemos colocar incondicionalmente uma coisa. As Escrituras podem ser vistas de uma perspectiva dupla: fora da história ou — como história. No primeiro caso, elas são interpretadas como um livro de eternas e sagradas imagens e símbolos. E nós devemos desembaralhá-los e interpretá-los precisamente como símbolos, de acordo com as regras do método simbólico ou alegórico. Na Igreja Antiga os aderentes ao método alegórico interpretavam as Escrituras dessa maneira. Os místicos da Idade Média e da era da Reforma entenderam as Escrituras também dessa maneira. Muitos teólogos contemporâneos, especialmente teólogos católico romano, também tendem a tal entendimento. As Escrituras aparecem então com um tipo de Livro de Leis, como um codex de comandos e ordens divinas, como uma coleção de textos ou "loci teológicos," como uma compilação de imagens e ilustrações. Elas se tornam então, um livro auto-suficiente e autocontido — um livro, por assim dizer, escrito para ninguém, um livro com sete selos...

Não se deve rejeitar tal aproximação: há uma certa verdade em tal interpretação. Mas a totalidade do espírito das Escrituras contradiz tal interpretação; ela contradiz o significado direto das Escrituras. E o erro básico de tal entendimento consiste na abstração do homem. Seguramente a Palavra de Deus é verdade eterna e Deus fala na Revelação para todos os tempos. mas se se admite a possibilidade de vários significados nas Escrituras e se reconhece nelas um tipo de significado interno que é abstraído e independente do tempo e da história, se está em perigo de destruir o realismo da Revelação. É um pensamento de que Deus falou assim para aqueles que primeiro ouviram diretamente e que eles não O entenderam — ou, pelo menos, não entenderam como Deus queria. Tal entendimento reduz a história à mitologia. E finalmente a Revelação não é somente um sistema de palavras divinas mas também um sistema de atos divinos; e precisamente por essa razão — ela é, acima de tudo, história, história sagrada ou a história da salvação (Heilsgeshichte), a história do pacto de Deus com o homem.

Somente em tal perspectiva histórica a totalidade das Escrituras se abre para nós. A textura das Escrituras é uma textura histórica. As palavras de Deus são sempre, e acima de tudo, relacionadas com o tempo — elas tem sempre, e acima de tudo, um significado direto. Deus vê diante Dele, como se fosse, aquele a quem Ele fala, e Ele fala por isso de tal forma que possa ser ouvido e compreendido. Pois Ele sempre fala por causa do homem, para o homem. Há um simbolismo nas Escrituras — mas é mais profético do que alegórico. Há imagens e alegorias nas Escrituras, mas em sua totalidade, elas não são uma imagem e alegoria mas história. Deve-se distinguir entre simbolismo e tipologia. Em simbolismo abstrai-se da história. Tipologia, no entanto, é sempre histórica; é uma espécie de profecia — quando os próprios eventos profetizam. Também se pode dizer que a profecia é também um símbolo — um sinal que aponta para o futuro — mas é sempre um símbolo histórico que chama a atenção para eventos futuros. As Escrituras tem uma teologia histórica: tudo se dirige para um ponto-limite histórico, ascendente em direção ao telos histórico. Por essa razão existe tanta tensão de tempo nas Sagradas Escrituras. O Velho Testamento é o tempo da expectativa messiânica — esse é o tema básico do Velho Testamento E o Novo Testamento é, acima de tudo, história — a história evangélica da Palavra Divina e o começo da história da Igreja, que é dirigida novamente para a expectativa Apocalíptica da realização futura. "Realização" é geralmente a categoria básica da Revelação.

Revelação é a Palavra de Deus e a Palavra a respeito de Deus. Mas, ao mesmo tempo, em adição a isso, a Revelação é sempre uma Palavra dirigida ao homem, uma intimação e um apelo ao homem. E na Revelação o destino do homem é também revelado. Em todo o caso, a Palavra de Deus nos é dada em nossa linguagem humana. Nós a conhecemos somente como ela soa através de nossa receptividade, em nossa consciência, em nosso espírito. E a substancia e objetividade da Revelação é apreendida não com o homem se abstraindo de si, não se despersonalizando, não se colocando num ponto matemático, transformando-se assim num "sujeito transcendental." É exatamente o oposto: um "sujeito transcendental" não pode nunca perceber nem entender a voz de Deus. Não é para um "sujeito transcendental" nem para nenhuma "consciência-em-geral" que Deus fala. O "Deus dos vivos," o Deus da Revelação fala para pessoas vivas, para sujeitos empíricos. A face de Deus revela-se somente para personalidades vivas. E o melhor, o mais completo e o mais claro que o homem vê a face de Deus, mais distinta e viva ficará sua face, porque mais completa e clara terá a "imagem de Deus" se exibido e realizada nele. A mais alta objetividade no ouvir e entender a Revelação é conseguida através do maior empenho da personalidade criativa, através de crescimento espiritual, pela transfiguração da personalidade, que se supera para a "sabedoria da carne," ascendendo para "a medida da estatura completa de Cristo" (εις μετρον ηλικιας του πληρωματος του Χριστου Ef. 4:13). Não é auto-abnegação que é solicitada do homem mas sim um movimento vitorioso para frente, não auto-destruição mas um renascimento ou transformação, na verdade uma theosis (θεωσις). Sem o homem a Revelação seria impossível — porque não haveria ninguém para ouvir e então Deus não falaria. E Deus criou o homem para que o homem ouvisse Suas palavras, as recebesse, crescesse nelas e através delas se tornasse um participante na "vida eterna." A Queda do homem não alterou a intenção de Deus. O homem não perdeu completamente a capacidade de ouvir Deus e louvá-Lo. E finalmente — o domínio e poder do pecado cessaram. "E (para isso) o Verbo se fez carne, e habitou entre nós; e nós vimos a sua glória, glória como de (Filho) Unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade" (Jo. 1:14). O caminho de vida e luz está aberto. E o espírito humano de novo torna-se capaz de ouvir Deus completamente e de receber Suas palavras.

II. Filosofia.

Mas Deus falou ao homem não só para que ele viesse a se lembrar e chamar à mente Suas palavras. Pode-se não só manter a "Palavra de Deus" na memória. Deve-se preservar a Palavra de Deus, acima de tudo, em um coração vivo e ardente. A Palavra de Deus é preservada no espírito humano como uma semente que germina e dá frutos. Isso significa que a verdade da divina Revelação deve se desdobrar dentro do pensamento humano, deve se desenvolver num sistema completo de confissão de crença, num sistema de perspectiva religiosa — pode-se dizer, num sistema de filosofia religiosa e de uma filosofia de Revelação.

Não há subjetivismo nisso. Conhecimento religioso sempre permanece em sua essência heterônomo, já que é uma visão e descrição da realidade divina que foi e é revelada ao homem pela entrada do Divino no mundo. Deus desceu ao mundo — e descobriu não somente Sua face para o homem mas de fato apareceu para ele. A Revelação é compreendida pela fé e fé é visão e percepção. Deus aparece para o homem e o homem contempla Deus. As verdades da fé são verdades de experiências, verdades de uma face. É exatamente isso que é a base da visível certeza da fé. Fé é uma confirmação descritiva de certos fatos — "assim é," "assim foi" ou "assim será." Exatamente por essa razão a fé é também não-demonstravel — fé é a evidência da experiência.

Deve-se distinguir claramente entre as épocas da Revelação. E não se deve verificar a essência da fé Cristã na base dos precedentes do Velho Testamento. O Velho Testamento era o tempo da expectativa; o pathos inteiro do homem do Velho Testamento era dirigido para o "futuro" — o "futuro" era a categoria básica de sua experiência e vida religiosa. A fé do homem do Velho Testamento era expectativa — a expectativa daquilo que ainda não era, daquilo que ainda não tinha vindo a passar, daquilo que ainda estava "invisível." Na verdade o tempo de expectativa chegou ao fim. As profecias foram cumpridas. O Senhor tinha vindo. E Ele tinha vindo para permanecer com aqueles que acreditassem Nele "todos os dias até a consumação dos séculos" (Mt. 28:20). Ele deu ao homem "o poder de serem feitos filhos de Deus" (Jo. 1:12). Ele enviou o Espírito Santo para o mundo para conduzir os fiéis "em toda a verdade" (Jo. !6:13), e trazer à lembrança tudo que o Senhor havia dito (Jo. 14:26 : εκεινος υμας διδαξει παντα και υπομνησει υμας παντα α ειπον υμιν εγω). Por essa razão os fiéis têm "a Unção do Espírito Santo e sabem tudo...e não têm necessidade de alguém que os ensine" (1 Jo 20 e 27). Eles têm a "unção da verdade," carisma veritatis, como São Irineu colocou. Em Cristo a possibilidade e o caminho da vida espiritual abre-se para o homem. E a altura da vida espiritual é conhecimento e visão, gnosis (γνοσις) e theoria (θεωρια). Isso altera o significado da fé. A fé Cristã não é dirigida primariamente para o "futuro," mas mais para aquilo que já foi cumprido — mais apropriadamente expressado, para o Eterno Presente, para a divina totalidade que foi e está sendo revelada por Cristo. Num certo sentido pode-se dizer que Cristo fez o conhecimento religioso possível pela primeira vez; isto é, o conhecimento de Deus. E isso Ele cumpriu não como pregador ou como profeta, mas como o "Príncipe da Vida" e como o Sumo Sacerdote da Nova Aliança. O conhecimento de Deus tornou-se possível através da renovação da natureza humana que Cristo realizou em Sua morte e Ressurreição. Essa renovação foi também a renovação da razão humana e do espírito humano. Isso significou de novo a renovação da visão humana.

E o conhecimento de Deus tornou-se possível na Igreja, no Corpo de Cristo como a unidade da vida de graça. Na Igreja a Revelação tornou-se uma revelação interior. Num certo sentido a Revelação tornou-se a confissão da Igreja. É muito importante lembrar que os escritos do Novo Testamento são mais novos do que a Igreja. Esses escritos formam um livro escrito na Igreja. Eles são um registro escrito da fé da Igreja, da fé que é preservada na Igreja. E a Igreja confirma a verdade das Escrituras, confirma sua autenticidade — verifica ela pela autoridade do Espírito Santo que habita na Igreja. Não se deve esquecer disso a respeito dos Evangelhos. Nos Evangelhos escritos a imagem do Salvador é mantida firme, a mesma imagem que viveu desde o inicio na memória viva da Igreja, na experiência da fé —não simplesmente na memória histórica mas na própria memória da fé. Essa é uma diferença essencial. Porque nós conhecemos Cristo não simplesmente por memórias e relatos. Não somente em Sua imagem viva na memória dos fiéis — Ele próprio habita entre eles, estando sempre diante da porta de cada alma. É exatamente nessa experiência da comunidade viva com Cristo que o Evangelho torna-se vivo como um livro sagrado. A Divina Revelação vive na Igreja — de que outra forma ela poderia preservar-se? Ela é esboçada e reforçada pelas palavras das Escrituras. Para estar certo, ela é esboçada — mas essas palavras não exaurem a totalidade inteira da Revelação, não exaurem a totalidade inteira da experiência Cristã. E a possibilidade de palavras outras e novas não está excluída. As Escrituras, em todo caso, pedem por interpretação.

E as verdades inalteráveis da experiência podem ser expressas em diferentes modos. A realidade Divina pode ser descrita em imagens e parábolas, na linguagem de poesia devocional e de arte religiosa. Essa era a linguagem dos profetas do Velho Testamento, e dessa maneira os Evangelistas falavam com freqüência, dessa maneira os Apóstolos pregaram, e dessa maneira a Igreja prega até hoje em seus hinos litúrgicos e no simbolismo de seus atos sacramentais Essa é a linguagem da proclamação e das boas novas, a linguagem de oração e de experiência mística, a linguagem da teologia "Kerygmática," e há outra linguagem, a linguagem do pensamento que compreende, a linguagem do dogma. Dogma é um testemunho da experiência. O "pathos" inteiro do dogma está no fato que ele aponta para a realidade Divina; nisso o testemunho do dogma é simbólico. Dogma é o testemunho do pensamento a respeito do que foi visto e revelado, a respeito do que foi contemplado na experiência da fé — e esse testemunho é expresso em conceitos e definições. Dogma é uma visão "intelectual," uma verdade de percepção. Pode-se dizer: é a imagem lógica, um "ícone lógico" da realidade Divina. E ao mesmo tempo o dogma é uma definição — daí ser a forma lógica tão importante para o dogma, aquela palavra "interior" que adquire força em sua expressão exterior. É por isso que o aspecto exterior do dogma — suas palavras — é tão essencial.

O dogma não é de jeito nenhum uma nova Revelação. O dogma é somente um testemunho. O significado todo da definição dogmática consiste no testemunho da verdade imutável, verdade que foi revelada e que tem sido preservada desde o início. Por isso é um total engano se falar de "desenvolvimento do dogma." O dogma não se desenvolve; eles são imutáveis e invioláveis, mesmo no seu aspecto exterior — suas palavras. É completamente impossível mudar a linguagem ou terminologia dogmática. Estranho quanto possa parecer, na verdade pode-se dizer: os dogmas surgem, os dogmas se estabelecem, mas eles não se desenvolvem. E uma vez estabelecido, o dogma é perene e já uma imutável "regra de fé" ("regula fidei"; o kanon tis pisteos, ο κανων της πιστεως). Dogma é uma verdade intuitiva, não um axioma discursivo que é acessível ao desenvolvimento lógico. O significado completo do dogma está no fato que ele é verdade expressada. A Revelação abre-se e é recebida no silencio da fé, em visão silenciosa — esse é o primeiro e apofático passo do conhecimento de Deus. A totalidade da verdade já esta contida nessa visão apofática, mas a verdade tem que ser expressa. O homem, no entanto, é chamado não só para ficar em silencio, mas também para falar, para comunicar. O silentium mysticum não exaure a totalidade da vocação religiosa do homem. Há também espaço para a expressão de louvor. Em sua confissão dogmática a Igreja se expressa e proclama a verdade apofática que ela preserva. A procura por definições dogmáticas é, em conseqüência, acima de tudo, uma procura por termos. Exatamente por essa causa as controvérsias doutrinais foram uma disputa sobre termos. Tinha-se que encontrar palavras acuradas e claras que pudessem descrever e expressar a experiência da Igreja. Tinha-se que expressar aquela "Visão espiritual" que se apresentava para o espírito crente em experiência e contemplação.

Isso é necessário porque a verdade da fé é também a verdade pela razão e pelo pensamento — isso não significa, entretanto, que é a verdade do pensamento, a verdade da pura razão. A verdade da fé é fato, realidade — aquilo que é. Nessa "busca por palavras" o pensamento humano muda, a essência do pensamento é transformada e santificada. A Igreja testemunha isso indiretamente ao rejeitar a heresia de Apolinário. Apolinarianismo é, no seu sentido mais profundo, uma falsa antropologia, é um falso ensinamento acerca do homem e por conseqüência é também um falso ensinamento a respeito do Deus-Homem Cristo. Apolinarianismo é a negação da razão humana, o medo do pensamento — "é impossível que não haja pecado nos pensamentos humanos" ("αδυνατον δε εστιν εν λογισμοις ανθρωπινοις αμαρτιαν" Gregório de Nissa, Contra Apollin. II, 6, 8; I, 2). E isso significa que a razão humana é incurável — atherapevton esti, αθεραπευτον εστι — isto é, ela deve ser cortada. A rejeição do Apolinarianismo significou então, naquele tempo, a justificação da razão e pensamento. Não no sentido, lógico, de que a "razão natural" é sem pecado e correta por si, mas no sentido que ela está aberta para transformação, que ela pode ser curada, que ela pode ser renovada. E não só ela pode mas também ela deve ser curada e renovada. A razão é intimada ao conhecimento de Deus. O "filosofar" a respeito de Deus não é simplesmente um traço de inquisitividade ou um tipo de curiosidade audaciosa. Ao contrário, é o preenchimento do chamado e obrigação religiosa do homem. Não uma conquista-extra, não um tipo de opus supererogatorium — mas um momento necessário e orgânico de comportamento religioso. E por essa razão a Igreja "filosofou" sobre Deus — "formulou dogmas que pescadores expuseram antes em palavras simples" (do ofício em louvor aos Três Hierarcas). Os "dogmas dos Padres" apresentam de novo o conteúdo imutável da "pregação Apostólica" em categorias intelectuais. A experiência da verdade não muda e nem mesmo cresce; na verdade, o pensamento penetra no "entendimento da verdade" e se transforma através do processo.

Pode-se dizer simplesmente: ao estabelecer dogmas a Igreja expressou a Revelação na linguagem da filosofia grega — ou, talvez preferível: traduziu a Revelação da linguagem poética e profética hebraica para o grego. Isso significou, num certo sentido, uma "Helenização" da Revelação. Na realidade, entretanto, foi uma "Igregificação" ("Verkirchlichung") do Helenismo. Pode-se falar longamente sobre esse tema — na verdade, esse tema com freqüência e muito, tem sido levantado e discutido — de fato, com excessiva freqüência ele tem sido discutido e disputado em excesso. É essencial aqui se levantar somente um item.

A Antiga Aliança passou. Israel não aceitou o Divino Cristo, não O reconheceu, não O confessou e a "promessa" passou para os Gentios. A Igreja é, acima de tudo, ecclesia ex gentibus. Nós devemos reconhecer esse fato básico da história Cristã com humildade diante da vontade de Deus, que é realizada no destino das nações. E a "chamada dos Gentios" significou que o Helenismo foi abençoado por Deus. Nisso não há "acidente histórico" — tal acidente não poderia existir ali. No destino religioso do homem não existem "acidentes." Em todo caso permanece o fato de que o Evangelho foi dado para todos nós e para o tempo todo na língua grega. É nessa língua que nós ouvimos o Evangelho em toda sua inteireza e totalidade. Isso o significa e, de fato, não pode significar que ele é intraduzível — mas nós sempre o traduzimos do grego. E existiu exatamente muito pouca "chance" ou "acidente" nessa "seleção" da língua grega — como a imutável protolíngua do Evangelho Cristão — como foi na "seleção" por Deus do povo judeu — entre todos os povos da antigüidade — como "Seu" povo — houve tão pouco "acidente" na "seleção" da língua grega como houve no fato que a "salvação vem dos judeus" (Jo. 4:22). Nós recebemos a Revelação de Deus como ela ocorreu. E não teria sentido perguntar se poderia ter sido de outra maneira. Na seleção dos "Helenos" nós devemos ver as decisões escondidas da vontade de Deus. Em todo caso, a apresentação da Revelação na língua do helenismo histórico, de modo nenhum restringiu a Revelação. Ela mais prova o oposto — que essa língua possuía certos poderes e recursos que ajudaram na exposição e expressão da verdade da Revelação.

Quando a verdade divina é expressa em linguagem humana, as palavras em si são transformadas. E o fato que as verdades são encobertas em imagens e conceitos lógicos testemunham para a transformação da palavra e pensamento — palavras tornam-se santificadas por esse uso. As palavras de definições dogmáticas não são "simples palavras," elas não são palavras "acidentais" que poderiam ser substituídas por outras. Elas são palavras eternas, impossíveis de serem substituídas. Isso significa que certas palavras —certos conceitos — são eternizados pelo simples fato de terem expressado a verdade divina. Isso significa que existe uma assim chamada philosophia perennis — que é alguma coisa eterna e absoluta em pensamento. Mas isso não significa em absoluto que existe uma "eternização" de um "sistema" filosófico específico.

Para afirmar mais corretamente — a dogmática Cristã é o único verdadeiro "sistema" filosófico. Alguém pode lembrar que os dogmas são expressos em linguagem filosófica —na verdade, numa linguagem filosófica específica — mas de modo nenhum na linguagem de uma escola filosófica específica. Melhor seria se se falasse de um "ecletismo" filosófico da dogmática Cristã. E esse "ecletismo" tem um significado muito mais profundo do que normalmente se pensa. Seu significado completo está no fato de que temas particulares da filosofia helênica foram recebidos, e através de sua recepção, eles mudaram essencialmente; eles mudaram e não são mais reconhecíveis. Porque agora, na terminologia da filosofia grega, uma nova, uma totalmente nova experiência é expressa. Apesar de temas e motivos do pensamento grego serem retidos, as respostas aos problemas são muito diferentes; elas são dadas a partir de uma nova experiência. Helenismo, por essa razão, recebeu o Cristianismo como alguma coisa estranha e estrangeira, e o Evangelho Cristão era "loucura" para os gregos (εθνεσιν δε μωιαν 1 Co 1:23).

O helenismo, forjado no fogo de uma nova experiência e de uma nova fé, está renovado; o pensamento helênico está transformado. Normalmente nós não percebemos o significado todo dessa transformação que o Cristianismo introduziu no reino do pensamento. Isso é assim, parcialmente porque nós permanecemos filosoficamente como gregos antigos com freqüência, não tendo ainda recebido o batismo de fogo do pensamento. E em parte, ao contrário, porque nós estamos muito acostumados à nova visão-de-mundo, retendo-a como uma "verdade inata" quando, de fato, ela nos foi dada somente através da Revelação. É suficiente apontar só alguns exemplos: a idéia de criação do mundo, não só no seu aspecto transitório e perecível mas também nos seus princípios primordiais. Para o pensamento grego o conceito de "idéias criadas" era impossível e ofensivo. E ligado com isso estava a intuição Cristã de história como uma única — ocorrida uma vez — realização criativa, um sentido de um movimento de um real "começo" até um final, um sentimento por história que de modo algum permite ser ligado com o pathos estático do antigo pensamento grego. E o entendimento do homem como pessoa, o conceito de personalidade, era inteiramente inacessível ao helenismo que considerava somente a máscara como pessoa. E finalmente há a mensagem da Ressurreição em glorificada porem carne real, um pensamento que só podia assustar os gregos que viviam na esperança da futura desmaterialização do espírito.

Esses são alguns dos novos enfoques descobertos com a nova experiência, a da Revelação. Eles são as pressuposições e categorias de uma nova filosofia Cristã. Essa filosofia está contida na dogmática da Igreja. Na experiência de fé o mundo se revela diferente do que na experiência do "homem natural." A Revelação não é somente a Revelação referente a Deus mas também acerca do mundo. Pois a totalidade da Revelação é na imagem do Deus-Homem; isto é, no fato da inefável união de Deus e o Homem, do Divino e do humano, do Criador e da criatura — na indivisível e não fundida união para sempre. É exatamente o dogma de Calcedônia da unidade do Deus-Homem que é o verdadeiro e decisivo ponto da Revelação, e da experiência de fé e da visão Cristã.

Estritamente falando, um claro conhecimento de Deus é impossível para o homem, se ele está comprometido com vagas e falsas concepções do mundo e de si próprio. Não há nada surpreendente a respeito disso. Porque o mundo é criação de Deus e daí, se alguém tem um falso entendimento do mundo, ele atribui a Deus um trabalho que Ele não realizou; e daí ele faz um julgamento distorcido da atividade e vontade de Deus. A esse respeito uma verdadeira filosofia é necessária por fé. E, de outro lado, a fé está comprometida com pressuposições metafísicas específicas. Teologia dogmática, como a exposição e explanação da verdade revelada divinamente no reino do pensamento, é exatamente a base da filosofia Cristã, de uma filosofia sagrada, de uma filosofia do Espírito Santo.

Uma vez mais se deve insistir: o dogma pressupõe experiência, e somente na experiência da visão e fé o dogma atinge sua totalidade e vem à vida. E de novo: os dogmas não exaurem essa experiência, assim como a Revelação não é exaurida nas "palavras" ou na "letra" das Escrituras. A experiência e conhecimento da Igreja são mais compreensíveis e completos do que seu pronunciamento dogmático. A Igreja testemunha muitas coisas que não estão em colocações "dogmáticas" mas em imagens e símbolos. Em outras palavras, teologia "dogmática" não pode nunca dispensar ou substituir a teologia "kerygmatica." Na Igreja a totalidade do conhecimento e compreensão é dada, mas essa totalidade é só parcialmente descoberta e professada — e em geral, o conhecimento nesse mundo é sempre somente "parcial," e a totalidade será revelada só na Parousia. "Agora conheço em parte" — ("αρτι γινωσκω εκ μερους..." 1 Co 13:12).

Esse "não completamento" do conhecimento depende do fato que a Igreja ainda está "em peregrinação," ainda em processo de vir a ser; ela testemunha a mística essência do tempo no qual o crescimento da humanidade está sendo completado de acordo com a medida da imagem de Cristo. E além disso: a Igreja não se esforça nada em expressar e declarar tudo. A Igreja não se esforça em cristalizar sua experiência num sistema fechado de palavras e conceitos. Entretanto esse "não completamento" do nosso conhecimento aqui e agora não enfraquece o caráter autêntico e evidente da Igreja. Um teólogo russo descreveu essa situação da seguinte forma: "A Igreja não dá plano fixo da Cidade de Deus para seus membros mas ela dá a eles a chave da Cidade de Deus. E aquele que entra, sem ter um plano fixo, pode ocasionalmente perder o caminho; no entanto, todas as coisas que ele ve, ele contempla como ela é, em sua completa realidade. Aquele, no entanto, que vier a estudar a Cidade de acordo com o plano, sem possuir a chave da Cidade real, nunca chegará à Cidade" (B.M.Melioranskii, em The Lectures on the History of the Ancient Christian Church, "Strannik" June, 1910, p. 931, em russo).

III. Teologia.

Revelação é preservada na Igreja. Ela foi dada por Deus para a Igreja, não para separar indivíduos. Assim como no Velho Testamento "as palavras de Deus" ("τα λογια του Θεου," ta logia ton Theos — Rom. 3:2) foram confiadas não a indivíduos mas ao Povo de Deus. A Revelação é dada, e é acessível, somente na Igreja; isto é, somente através da vida em Igreja, através de viver e de fato pertencer ao místico organismo do Corpo de Cristo. Isso significa que o conhecimento genuíno só é possível no elemento da Tradição.

Tradição é um conceito muito importante, que usualmente é entendido muito estreitamente: como Tradição oral em oposição às Escrituras. Esse entendimento não só estreita mas também distorce o significado da Tradição. Tradição Sagrada como a "tradição da verdade" — traditio veritatis, como São Irineu colocou — é não somente a memória histórica, não só um apelo à antigüidade e à imutabilidade empírica. Tradição é a mística e interna memória da Igreja. Ela é, acima de tudo, a "unidade do Espírito," a unidade e continuidade da experiência espiritual e da vida de graça. É a conexão viva com o dia de Pentecostes, o dia em que o Espírito Santo desceu no mundo como o "Espírito de Verdade." A fidelidade à Tradição não é uma lealdade à antigüidade mas sim a relação viva com a plenitude da vida Cristã.

O apelo à Tradição não é tanto o apelo a padrões antigos quanto é um apelo à experiência "católica" da Igreja, à plenitude do conhecimento dela. Como a bem conhecida frase de São Vicente de Lerins coloca: quod semper, quod ubique, quod ab omnibus creditum est — nessa fórmula, à qual se apela com freqüência, há uma ambigüidade essencial. "Semper" e "ubique" não devem ser entendidos em seu sentido literal e empírico. E "omnes" não inclui todos que alegam serem Cristãos, mas só os "verdadeiros" Cristãos que preservam a doutrina correta e a interpretam corretamente. Aqueles, no entanto, que são "heréticos," que estão desencaminhados, e aqueles que são fracos na fé não estão incluidos no conceito de "todos." A fórmula de São Vicente é baseada em tautologia. O escopo da Tradição não pode ser estabelecido simplesmente por pesquisa histórica. Esse seria um caminho muito perigoso. Significaria um completo desrespeito com a natureza espiritual da Igreja. A Tradição é conhecida e entendida somente pertencendo à Igreja, através de participação em sua vida comum ou "católica."

O termo "católico" é muitas vezes entendido errado e imprecisamente. O katholicos (καθολικος) de kath olu (καθ ολου) não significa de todo uma universalidade externa—não é um critério quantitativo mas sim qualitativo. "Católico" não significa "universal"; katholicos não é idêntico a ikumenikos (οικουμενικος). A "Igreja Católica" pode historicamente também se tornar um "pequeno rebanho." Existem provavelmente mais "heréticos" do que "fiéis Ortodoxos" e no mundo atual pode acontecer também que os "heréticos" estejam "em todo lugar" — ubique e a verdadeira Igreja é empurrada para o fundo da história, para o "deserto." Isso foi freqüentemente o caso e pode acontecer de novo. Mas essas limitação e situação empíricas de modo nenhum destroem a natureza "católica" da Igreja. A Igreja é católica porque ela é o Corpo de Cristo, e na unidade desse Corpo o crescimento recíproco dos membros individuais tem lugar; separação e isolamento mútuo são superados, e a verdadeira "comunidade" ou a "vida comum" — kinonia ou kinovia — são realizadas. E isso se refere ao pensamento também. Na unidade da Igreja a catolicidade da consciência é realizada. Nisso está contido o verdadeiro mistério da Igreja: "Para que todos sejam um, como ó Pai, o és em mim, e eu em ti; que também eles sejam um em nós...para que eles sejam perfeitos em unidade..." ("ινα παντες εν ωσιν—ινα ωσιν τετελειωμενοι εις εν” Jo.17:21, 23).

Essa "plenitude da unidade" na imagem da Trindade é precisamente a catolicidade da Igreja. Explicando a prece de Sumo Sacerdote de nosso Senhor, o Metropolita Anthony de Kiev afirmou: "Essa oração se refere a nada mais do que o estabelecimento de uma existência nova e unida da Igreja na terra. Essa realidade tem sua imagem não na terra, onde não existe unidade mas somente divisão, mas sua imagem está no céu onde a unidade do Pai, Filho e Espírito Santo une três Pessoas em um só Ser. Assim não há três Deuses mas um só Deus Que vive Uma vida. A Igreja é a existência completamente nova, particular, única na terra, uma existência única que não pode ser claramente definida por conceitos tomados da vida profana. A Igreja é uma imagem da existência Trinitária, uma imagem na qual muitas pessoas tornam-se um só ser. Porque é tal existência, como também a existência da Santíssima Trindade, nova e, para o homem antigo, inacessível? Por essa razão: porque na autoconsciência natural a pessoa é fechada dentro de si próprio e é radicalmente oposta a todas as outras pessoas" (Arcebispo Anthony Khrapovitskti, Collected Works, II, 2; São Petersburgo, 1911, — "The Moral Idea of the Church," pgs. 17 e 18; (em russo). Em outro lugar o Metropolita Anthony coloca: "O Cristão, portanto, deve se libertar, na medida de sua perfeição espiritual, da direta oposição entre o "Eu" e o "não-Eu" — para transformar desde suas bases a estrutura humana de sua auto-consciência" (Ibid.,p.65). Tal transformação da "autoconsciência humana" também tem lugar na Igreja, na consciência "católica" ou "comunal" da Igreja. Consciência "católica" não é uma consciência coletiva, não uma consciência-de-comunidade universal ou profana—nem é um conglomerado de consciências individuais; não é uma "consciência-geral" impessoal. "Catolicidade é a concreta "unidade de pensamentos" e "comunidade de pessoas." "Catolicidade" é estrutura e estilo, "a determinação da consciência pessoal" que supera a sua limitação e isolamento e amadurece para um nível "católico" — "catolicidade" é o padrão ideal ou ponto-limite, o telos, (τελος) da consciência pessoal, que é realizado na afirmação, e não na abolição da personalidade. E a medida da "catolicidade" só pode ser realizada através da vida em Cristo. E não porque nós realizamos em nossa consciência uma abstrata "consciência-em-geral" ou uma natureza impessoal de pensamento lógico, mas sim porque a "catolicidade" é realizada por experiência concreta ou pela Visão da Verdade A unidade é realizada pela participação na verdade una, ela se realiza na verdade, em Cristo. E dai a consciência se transforma. Como a mais clara expressão dessa transformação pode-se reconhecer aquela misteriosa superação do tempo que tem lugar na Igreja.

Em Cristo os fiéis de todas as épocas e gerações unificam-se e unem-se — encontrando cada outro, como se fossem contemporâneos unidos misticamente. Precisamente isso consiste o significado religioso e metafísico da "comunhão dos santos" — communio sanctorum. E assim a memória da Igreja é orientada não para o passado que se foi mas para aquele que foi realizado ou "completado" — a memória da Igreja é voltada para aqueles do passado como contemporâneos na plenitude da Igreja do Corpo de Cristo, que engloba todos os tempos. Tradição é o símbolo dessa "ausência—de-tempo."

Conhecer ou perceber através da Tradição significa conhecer ou perceber essa plenitude dessa experiência de "ausência-de-tempo." E isso só pode ser conhecido dentro da Igreja por cada pessoa em sua experiência pessoal, de acordo com a medida de sua maturidade espiritual. Virar-se para Tradição significa virar-se para essa plenitude. A "transformação Católica" da consciência torna possível para cada pessoa conhecer — não só para si mas para todos; ele torna a plenitude dessa experiência possível. E esse conhecimento é livre de todas as restrições. Na natureza católica da Igreja há a possibilidade do conhecimento teológico e não de algo simplesmente baseado em "opiniões" teológicas. Eu sustento que cada pessoa pode realizar o padrão católico em si. Eu não digo que cada pessoa o realiza. Isso depende da medida da maturidade espiritual de cada um. Cada pessoa, no entanto, é chamada. E aqueles que o realizam são chamados de Pais ou Professores da Igreja, pois nós ouvimos deles não simplesmente opiniões pessoais, mas o verdadeiro testemunho da Igreja — porque eles falam da plenitude Católica. Essa plenitude é inexaurida e inexaurível. E nós somos convocados a testemunhar a respeito disso e nisso a vocação do homem é realizada. Deus revelou-Se e revela-Se para o homem. E nós somos chamados a testemunhar aquilo que nós vimos e vemos.

 

 

Criação e condição da Criatura.

"Eis que nas palmas das minhas mãos te tenho gravado; os teus muros estão continuamente perante mim" (Isaias 49:16).

I.

O mundo é criado. Isso significa: o mundo veio do nada. Isso significa que não existia mundo antes que ele brotasse e viesse a ser. Ele brotou e veio a ser junto com o tempo. Porque quando não existia mundo, não havia tempo. Porque "o tempo é contado a partir da criação dos céus e da terra," como disse São Máximo o Confessor.¹ O mundo só existe no tempo — em mudança, sucessão e duração. Sem o mundo não há tempo. E a gênese do mundo é o começo do tempo.² Esse começo, como São Basílio o Grande explica, ainda não é o tempo, nem uma fração do tempo, assim como o começo de uma estrada ainda não é a própria estrada. É simples e não composto.³ Não havia tempo; e subitamente, de repente, ele começou. A criação explode, vem para ser, passa de não-ser para ser. Ela começa a ser. Como diz São Gregório de Nissa, "A própria subsistência da criação deveu seu inicio à mudança"4 "a própria transição de não-entidade para existência é uma mudança, não-existência sendo mudada pelo Divino poder para ser"5. Essa gênese primordial e começo da mudança e duração, essa "transição" do vazio para a existência, é inacessível para o pensamento humano. Mas ela se torna compreensível e imaginável pelo seu oposto. Nós sempre calculamos o tempo em ordem inversa, lá de traz para o presente, retirando-nos para as profundezas do tempo, indo para traz na seqüência temporal; e só secundariamente nós pensamos em termos de contagem consecutiva. E indo para traz, no passado, nós paramos em uma determinada conexão, uma que é calculada e calculável de dentro das séries, com a clara consciência de que nós devemos parar. A própria noção do começo do tempo é essa necessidade de parar, é a verdadeira impossibilidade de uma regressão infinita ao passado. Não faz diferença se nós podemos ou não computar esse limite de retirada em termos de séculos ou dias. A proibição em si permanece em força total. Uma primeira unidade é postulada absolutamente nas séries temporais, antes da qual não há outras conexões, nem outros momentos de tempo, porque não há mudança, e nem qualquer seqüência. Não é o tempo que precede o tempo, mas "a altura da sempre-presente eternidade" transcendendo a duração — celsitudo semper praesentis aeternitatis, como Santo Agostinho costumava dizer. O tempo começou. Mas existirá um tempo "quando o tempo não será mais" — "oti kronos uketi estai" ("οτι χρονος ουκετι εσται" Rev. 10:6). A mudança cessará. E de acordo com São João Damasceno, "O tempo, depois da ressurreição, não será mais numerado por dias e noites; haverá, isso sim, um dia sem anoitecer"6. A seqüência temporal será quebrada; haverá uma última unidade nela. Mas esse fim e cessação de mudança não indicam a abolição do que começou no tempo, do que era e existia no tempo; ele não sugere um retorno ou recaída no nada. Não haverá tempo, mas a criação será preservada. O mundo criado pode existir mesmo no não-tempo. A criação começou, mas não cessará.7 Tempo é uma espécie de segmento linear com começo e fim. E portanto não pode ser comparado com a eternidade, porque o tempo tem um começo. E na eternidade não há mudança, nem um começo. O todo da temporalidade não coincide com a eternidade. "A totalidade dos tempos" (omne tempus) não necessariamente significa "sempre" (semper), como Agostinho apontou.8 Sem fim não significa necessariamente sem começo. E a criação pode ser comparada a um matemático "pacote de raios," metades de linhas retas que se estendem de seus pontos-de-origem até o infinito. Uma vez trazido do nada e do não-ser, o mundo teve no criativo fiat uma imutável e final base e suporte para sua existência. "O mundo é como uma ponte adamantina sobre a qual as criaturas são colocadas, e elas ficam sobre o abismo da Divina Infinitude, sobre o abismo de seu próprio nada," disse o Metropolita Philaret. "Porque a palavra de Deus não pode ser comparada com a palavra falada do homem, que, quando pronunciada, imediatamente se desvanece no ar. Em Deus não há nada de cessação, nada de desvanecimento: Sua palavra procede mas não retrocede: "a palavra do Senhor permanece para sempre (1 Pe. 1:25)"9. Deus "Criou todas as coisas, para que elas possam ter seu ser" (Sabed. de Salomão 1:14). E não para o tempo, mas para sempre Deus criou: Ele trouxe a criação para ser por Sua palavra criativa. "O mundo também está firmado, e não poderá vacilar" (Sl. 93:1).

O mundo existe. Mas ele começou a existir. E isso significa: o mundo poderia não ter existido. Não há nenhuma necessidade para a existência do mundo. A condição da criatura existente não é auto-suficiente e não é independente. No próprio mundo criado não há base, para gênese e ser. A criação em si, por sua própria existência testemunha e proclama sua condição de criatura, ela proclama que ela foi produzida. Falando nas palavras de Agostinho, " [Ela] que foi criada — ela clama que ela não se criou: [Eu] existo porque eu sou criado; e eu não era antes que eu viesse a ser, e eu não poderia me produzir de mim mesmo..." — clamant quod facta sunt. Clamant etiam quod seipsa non fecerint: ideo sumus, quia facta sumus; non eramus ante quam essemus, ut fieri possemus a nobis...10

Por sua própria existência a criação aponta para além de seus próprios limites. A causa e base do mundo estão fora do mundo. O ser do mundo somente é possível através da vontade supra-mundana do misericordioso e Todo-Poderoso Deus, que . "chama as coisas que não são como se já fossem" (Ro.4:17). Mas, inesperadamente é precisamente na sua condição de criatura que a estabilidade e substanciabilidade do mundo está enraizada. Porque a sua origem do nada determina o outro, a "não-consubstanciabilidade" do mundo e de Deus. É insuficiente e inexato dizer que as coisas são criadas e colocadas fora de Deus. O "fora" em si é colocado somente para a criação, e a criação "do nada" [ex nihilo] é precisamente a tal posição "de fora," a posição de um "outro" lado a lado com Deus. Certamente não no sentido de alguma limitação para plenitude Divina, mas no sentido de que lado a lado com Deus surge um outro, uma substância ou natureza heterogênea, um diferente Dele, e num certo sentido um sujeito independente e autônomo. Aquele que não existia brota e aparece. Na criação algo absolutamente novo, uma realidade extra-Divina é criada. É exatamente nisso que consiste o supremamente grande e incompreensível milagre da criação — que um "outro" aquelas heterogêneas gotas de criação existem lado a lado com "o ilimitado e infinito Oceano de ser," como São Gregório de Nazianzo diz de Deus.11.Há uma distância infinita entre Deus e a criação, e essa é uma distância de naturezas. Tudo é distante de Deus, e é remoto Dele não por lugar mas por natureza u topo alla physi (ου τοπω αλλα φυσει) — como explica São João Damasceno.12. E essa distância nunca é removida, mas é só como se fosse superada pelo Divino amor. Como Santo Agostinho disse, na criação "não há nada relacionado com a Trindade, exceto o fato de que a Trindade a criou" — nihilique in ea esse quod ad Trinitatem pertineat, nisi quod Trinitas condidit...13 Mesmo nas mais exaltadas alturas de ascensão e intimidade oracional há sempre um limite inultrapassável, onde sempre pode ser percebida e revelada a dualidade viva de Deus e a criação. "Ele é Deus, e ela é não-Deus," disse Macário o Grande, da alma. "Ele é o Senhor e ela é a serva; Ele é o criador e ela é a criação; Ele é o Arquiteto, e ela é a construção; e não há nada comum entre a natureza Dele e dela" 14 Qualquer transubstanciação da natureza criada em Divina é tão impossível quanto a mudança de Deus em criação, e qualquer "coalescência" e "fusão" de naturezas estão excluídas. Na una e única hipóstase e pessoa de Cristo — o Deus-Homem — apesar de ser completa a interpenetração mútua das duas naturezas, elas permanecem com sua diferença imutável; "sem que a distinção das duas naturezas seja eliminada por essa união, mas sim com as específicas propriedades de cada natureza sendo preservadas" ("Ουδαμου της των φυσεων διαφορας ανηρημενες δια τυν ενωσιν σωζομενης δε μαλλον της ιδιοτητος εκατερας φυσεως" o Oros [ορος] de Calcedônia). O vago "de duas naturezas" os Padres de Calcedônia transformaram no forte e claro "em duas naturezas," e pela confissão da dupla e bilateral consubstanciabilidade do Deus-Homem eles estabeleceram um critério e regra de fé, inabalável e indisputável. A natureza real da natureza humana criada, isto é, de uma outra e segunda natureza fora de Deus e lado a lado com Ele, é um pré-requisito indispensável para realização da Encarnação sem nenhuma mudança ou transmutação da natureza Divina.

O que é criado é fora de Deus, mas é unido com Ele. Os Padres do século quarto, movidos pela controvérsia Ariana para definir o conceito de criação de uma maneira clara e precisa, insistiram acima de todo resto na heterogeneidade do criado e do Criador em contraposição à "consubstancialidade" da geração; e eles corrigiram essa heterogeneidade com a dependência da criação da vontade e volição de Deus. Todas as coisas criadas, escreveu Santo Atanásio o Grande, "não são em nada parecidas com seu Criador em substância, mas estão fora Dele," e assim poderiam também não ter existido.15 Criação "vem a ser, feita de fora"16 E não há nenhuma similaridade entre aquilo que explode do nada e o Criador Que é Quem verdadeiramente, traz as criaturas do nada17.Vontade e volição precedem a criação. Criar é um ato de vontade [ek vulimatos, εκ βουληματος], e portanto é profundamente distinta da geração Divina, que é um ato de natureza [genna kata physin, γεννα κατα φυσιν].18 Uma interpretação similar foi dada por São Cirilo de Alexandria. A geração é fora de substância, kata physin (κατα φυσιν). Criar é um ato, e não é feito fora da substância do próprio criador; e por isso uma criação é heterogênia ao seu criador19 Resumindo a interpretação patrística, São João Damasceno dá a seguinte definição: "Geração significa produzir da substância do gerador um resultado similar em substância ao gerador. Criação, ou fazer, de outro lado, é o trazer para ser, de fora e não da substância do criador, um ator de alguma coisa, inteiramente diferente [por natureza]." Geração é realizada "por um poder natural de gerar," ("της γονιμοτητος φυσικης") e criar é um ato de volição e vontade — theliseos ergon (θελησεως εργον).20 A condição de criatura determina a completa não similaridade da criação e Deus, a condição de ser outro e daí sua independência e substancialidade. Toda seção de São João é na verdade, uma elaborada réplica aos argumentos de Orígenes.

Criação não é um fenômeno mas uma "substância." A realidade e substanciabilidade da natureza criada são primeiramente manifestadas na liberdade da criatura. A liberdade não é exaurida pela possibilidade de escolha, mas a pressupõe e começa com ela. E a liberdade da criatura é descoberta antes de tudo na igual possibilidade de dois caminhos: para Deus ou para fora de Deus. Essa dualidade não é meramente uma possibilidade formal ou lógica, mas uma possibilidade real, dependente da presença efetiva de poderes e capacidades não só para uma escolha entre, mas também para seguir um dos dois caminhos. A liberdade consiste não só na possibilidade, mas também na necessidade de escolha autônoma, da resolução e da decisão de escolha. Sem essa autonomia, não acontece nada na criação. Como diz São Gregório Teólogo, "Deus legisla sobre a autodeterminação humana"21 "Ele honrou o homem com liberdade que pertence não menos a ele que a escolheu do que a Ele que plantou sua semente"22 A criação deve ascender e unir-se com Deus por seus próprios esforços e conquistas. E se o modo de união requer e pressupõe um correspondente e precedente movimento da Misericórdia Divina, "a antiga lei da liberdade humana," como São Irineu colocou uma vez, não é em nada minada por isso." O caminho de desunião não é fechado para as criaturas, o caminho da destruição e morte. Não há graça irresistível, as criaturas podem se perder, são capazes, como se fosse, de "suicídio metafísico." Em sua vocação primordial e definitiva, a criação é destinada à união com Deus, para comunhão e participação em Sua vida. Mas essa não é uma necessidade obrigatória da natureza da criação. Por certo, fora de Deus não há vida para a criação. Mas como Agostinho disse com felicidade, ser e vida não coincidem na criação23 E portanto, a existência na morte é possível. Logicamente, a criação pode se realizar e se estabelecer plenamente somente superando seu auto-isolamento, só em Deus. Mas mesmo sem realizar sua verdadeira vocação, e até se opondo a ela, indo desse modo para baixo e se perdendo, a criação não deixa de existir. A possibilidade de suicídio metafísico está aberta para ela. Mas o poder de auto-aniquilamento não é dado. A criação é indestrutível — e não só aquela criação que está enraizada em Deus como na fonte do verdadeiro ser e vida eterna, mas também aquela criação que se colocou contra Deus. "Porque a aparência desse mundo passa" (1Co.7:31), e passará. Mas o mundo em si não passará. Porque ele foi criado "para que ele pudesse ser." Suas qualidades e propriedades são mutáveis, e mudam; mas seus "elementos" são imutáveis. E acima de tudo, imutável é o microcosmo humano, e imutáveis são as hipóstases dos homens, seladas como elas são e trazidas do nada pela criativa vontade de Deus. Na verdade, o caminho da rebelião e apostasia é o caminho da destruição e perdição. Mas ele conduz não para o não-ser, mas para a morte; e morte não é o fim da existência, mas a separação — separação de alma e corpo, a separação da criação de Deus. De fato, o mal "não é uma entidade"24 O Mal não tem "substância" — é um anusion (ανουσιον) de acordo com São João Damasceno.25 O Mal tem um caráter negativo e primitivo, é a ausência e privação do verdadeiro ser. E ao mesmo tempo, como diz São Gregório de Nissa, "Em seu verdadeiro não-ser ele tem o seu ser." (εν τω μη ειναι εχει)26 A raiz e caráter do Mal é ilusão e erro. Mal, na frase incisiva de um teólogo alemão, e "uma mitopoética mentira" ["eine dichtende Lüge" — F.Staudenmeier]. É um tipo de ficção, mas uma ficção carregada com enigmáticos poder e energia. O Mal é ativo no mundo, e nisso ele é verdadeiramente real. O Mal introduz novas qualidades no mundo, como se estivesse adicionando alguma coisa à realidade criada por Deus, alguma coisa não desejada e não criada por Deus, apesar de tolerada por Ele. E essa inovação, num certo sentido "não—ser," é de uma maneira enigmática real e poderosa, "Pois Deus não fez a morte" (Sabed. Salomão1:13), e no entanto, toda a criação torna-se submetida à futilidade, e à servidão da corrupção (Ro.8:20-21). Pelo pecado a morte espalhou-se para todos os homens (Ro.5:12), e o pecado, começou, ele mesmo, uma inovação fictícia no mundo, o desovar da vontade criada e dos vícios humanos, criou a morte e como se tivesse estabelecido uma nova lei de existência para a criação, um tipo de anti-lei. E num certo sentido, o Mal é não-erradicável. Contudo, porque a perdição final em tormentos eternos provocados pelo Mal "na ressurreição para julgamento" não significa a total aniquilação nem a total supressão dos seres malignos, é impossível se atribuir ao Mal tal poder anticriativo que sobrepujaria o poder criativo de Deus. Por sua devastação do ser, o Mal não pode ser apagado do ser. E, tal devastada, distorcida, decepcionadora e falsa realidade é misteriosamente recebida na eternidade, ainda que nos tormentos do fogo inapagável. A eternidade de tormentos que virá sobre os filhos da perdição aponta com uma urgência especial e agudeza para a realidade da criação de uma segunda e extradivina realidade. Ela é provocada por uma persistente ainda que livre rebelião, por uma auto-afirmação no Mal. Assim, em se tornando, tanto dissolução — como santidade, tanto perdição — como obediência — a criação se manifesta e testemunha a sua própria realidade como o objeto livre dos decretos divinos.

A idéia de criação é estranha à consciência "natural." O Helenismo clássico não conhecia isso. A filosofia se esqueceu disso. Dado nas Escrituras, ele é descoberto e manifestado na experiência viva da Igreja. Na idéia da criação estão sobrepostos o motivo da imutável e não-transitória realidade do mundo como um sujeito livre e ativo (mais precisamente, como a totalidade de sujeitos interativos) e o motivo de sua total não-auto-suficiência, de sua definitiva dependência de um Outro princípio mais elevado. E por isso qualquer suposição do não-começo do mundo, a necessidade de sua existência, e qualquer admissão de sua eliminação estão excluídas. A criação não é nem um ser auto-existente, nem um tornarem-se transitório; nem "substância" eterna, nem "aparência" ilusória. Na condição de criatura uma grande maravilha é revelada. O mundo também poderia não ter existido de todo. E aquilo que poderia não ter existido, pois para aquilo não há causas ou bases inevitáveis, existe. Isso é um enigma, uma "loucura" para o pensamento "natural." E daí vem a tentação de atenuar e embotar a idéia de criação, para substituí-la por outras noções. Somente pela aproximação contrária o mistério da criação pode ser esclarecido, e a ocorrência da exclusão e suspensão de todas especulações e conjecturas evasivas.

II.

Deus criou em perfeita liberdade. Essa proposição é estruturada com notável precisão pelo "Doutor Sutil" da Idade Média Ocidental, Duns Scotus: Procedit autem rerum creatio a Deo, non aliqua necessitate, vel essentiae, vel scientiae, vel voluntatis, sed ex mera libertate, quae non movetir et multo minus necessitatur ab aliquo extra se ad causandum. "A criação de coisas é executada por Deus não por qualquer necessidade, seja de essência ou de conhecimento ou de vontade, mas por uma pura liberdade que não é movida — muito menos constrangida — por nada externo que poderia ser a causa"27 Ainda assim, definindo a liberdade de Deus na criação não é suficiente para acabar com as cruas concepções de compulsão, de necessidade externa. É óbvio que nós não podemos nem falar de qualquer tipo de compulsão externa, porque o próprio "fora" só é possível a partir da criação. Na criação Deus é determinado somente por Si próprio. Mas não é tão fácil demonstrar a ausência de qualquer "necessidade" interna nessa auto-determinação, na revelação de Deus ad extra. Aqui, o pensamento é tomado por sedutoras tentações. A questão pode ser posta dessa maneira: Devem as atribuições de Criador e Sustentador ser consideradas como pertencentes às propriedades essenciais e formativas do Ser Divino? O pensamento da Divina imutabilidade pode nos prevenir de dar uma resposta negativa. Exatamente assim respondeu Orígenes no seu tempo. "É igualmente ímpio e absurdo dizer que a natureza de Deus deve ficar à toa e nunca se mover, ou supor que existiu um tempo em que Deus não fez o bem e que a Onipotência não exerceu o seu poder" 28 Da perfeita extra-temporabilidade e imutabilidade do Ser Divino, Orígenes, nas palavras de Bolotov, tirou a conclusão "que todas as Suas propriedades e predicados sempre pertencem à Deus no estrito senso — in actu, in status quo" 29. Aqui, "sempre" para Orígenes tem o significado de "eternidade extratemporal," e não só o "todo da temporabilidade" — "Assim como ninguém pode ser pai se não tiver um filho, nem senhor se não tiver possessão ou escravo," raciocina Orígenes, "assim também nós não podemos nem chamar Deus Todo-Poderoso — Pantocrator se não houver criaturas sobre as quais Ele possa exercer o Seu poder. Pois se alguém considerar que em certas épocas, ou períodos de tempo, ou de Divina Onipresença — como queira chamar — houve um lapso durante o qual a presente criação não teria existido, ele teria indubitavelmente provado que nesses tais períodos Deus não era Todo Poderoso mas que Ele tornou-se Pantocrator depois, que Ele tornou-se Todo Poderoso a partir do tempo em que Ele começou a ter criaturas sobre as quais Ele pudesse exercer poder. Assim Deus teria aparentemente experimentado uma espécie de progresso, pois não pode existir dúvida que para Ele ser Todo Poderoso é melhor do que não ser. Agora existe". coisa mais absurda do que pensar que Deus, de início, não tinha alguma coisa que fosse apropriada a Ele e então passou a ter? Mas se não houve tempo em que Deus não foi Todo Poderoso, então devem ter existido sempre, as coisas em virtude das quais Ele é Todo Poderoso; e devem ter existido sempre coisas sob essa regra, sobre a qual Ele é o Mandatário."30 Em vista da perfeita imutabilidade Divina, "é necessário que todas as criaturas tenham sido criadas no início, e que não tenha havido tempo em que elas não tenham existido." Porque é inadmissível pensar que, no tempo, Deus "passaria da inação para a ação." Daí é necessário reconhecer "que com Deus todas as coisas são sem início e são coeternas"31.

Não é fácil ou simples escapar da rede dialética de Orígenes. Nessa problemática reside uma incontestável dificuldade. "Quando eu penso em que Deus era o Senhor desde a eternidade, se a criação não é desde sempre," exclamou Santo Agostinho, "eu receio afirmar qualquer coisa." Cum cogito cuius rei dominus semper fuit, si semper creatura non fuit, affirmare aliquid pertimesco...32 Orígenes complicou sua questão por sua inabilidade em se desembaraçar completamente do tempo que muda.

Junto com a sempiterna e imóvel eternidade do Divino Ser, ele imaginou um interminável fluxo de eras que tinham que ser cumpridas. Além disso, qualquer seqüência nos predicados Divinos aparecia para ele sob a forma de real mudança temporal; e por isso, tendo excluído mudança, ele estava inclinado a negar, de todo, qualquer seqüência, ou interdependência entre esses predicados tomados como um todo; ele afirmava mais do que a "co-eternidade" do mundo com Deus; ele afirmava a necessidade da auto-abertura Divina ad extra, a necessidade da revelação e o derramar da bondade Divina sobre o "outro" desde toda eternidade, a necessidade da eterna realização da plenitude e de todas as potencialidades do poder Divino. Em outras palavras, de modo a concordar com a noção de imutabilidade Divina, Orígenes tinha que admitir a necessidade de conjuntamente existir um sempre-existente e sem começo "não-eu" como um pré-requisito correspondente a e correlativo da Divina plenitude e vida. E aqui está o definitivo fulcro da questão. Era também possível que o mundo não existisse de todo — possível no pleno sentido da palavra somente para garantir que Deus pudesse também não criar. Se, de outro lado, Deus criasse por necessidade, por conta da plenitude de Seu Ser, então o mundo deveria existir; então não seria possível que o mundo não tivesse existido. Mesmo que se rejeite a noção de Orígenes da infinitude do real tempo passado e, ao contrário, se reconheça o início do tempo, uma questão permanece: Ao menos o pensamento do mundo não pertence à necessidade absoluta do Divino Ser?

Podemos assumir que o mundo real veio a existir junto com o tempo, e que "existiu um quando não era," quando não havia mudanças temporais. Mas a imagem do mundo, isso não permanece eterno e para sempre no Divino conhecimento e vontade, participando imutável e inelutavelmente na plenitude do auto-conhecimento e auto-determinação Divina? Nesse ponto São Metódio de Olimpo já tinha posto o seu dedo contra Orígenes, reforçando que a Divina Toda-Perfeição não pode depender de nada, exceto do próprio Deus, e de Sua própria natureza33 De fato, Deus criou somente por Sua bondade, e nessa Divina bondade está a única base de Sua revelação para o "outro," a única base do verdadeiro ser daquele "outro" como recipiente e objeto dessa bondade. Mas não deveríamos pensar nessa revelação como eterna? E se devêssemos — desde que Deus vive na eternidade e numa imutável plenitude — isso não significaria que na final análise "a imagem do mundo" estava presente, e conjuntamente presente, com Deus imutável em eternidade, e além disso na inalterável plenitude de todos os seus predicados particulares? Não há ai uma "necessidade de conhecimento ou de vontade?" Isso não significa que Deus em Sua eterna autocontemplação também necessariamente contempla mesmo aquilo que Ele não é, aquilo que não é Ele, mas o outro? Não está Deus ligado em Sua sempiterna autoconsciência à imagem de Seu "não Eu" ao menos como um tipo de possibilidade? E em Sua autoconsciência não é Ele forçado a pensar e contemplar Ele mesmo como um princípio criativo e como a fonte do mundo, e do mundo como um objeto de e participante em Seu bom prazer? E de outro lado, sobre o mundo inteiro há imprimido o Divino selo, um selo de permanência, um reflexo da glória Divina. A economia Divina do mundo, a imutável Providência de Deus, contém — na nossa visão — perfeita estabilidade e sábia harmonia — e também um tipo de necessidade. Essa visão impede nosso entendimento e compreensão da afirmação de que o mundo poderia também não ter existido. Parece que não podemos conceber o mundo como não-existente sem introduzir uma espécie de ímpia fortuidade ou arbitrariedade em sua existência e gênese, ambas contraditórias e derrogatórias para a Sabedoria Divina. Não é óbvio que deve existir algum tipo de causa suficiente para o mundo, cur sit potius quam non sit? E que essa causa deve consistir na imutável e sempiterna vontade e comando de Deus? Não segue que uma vez que o mundo é impossível sem Deus, Deus também é impossível sem o mundo? Assim a dificuldade está somente escondida, mas não resolvida, se nós nos limitarmos ao começo cronológico da existência real do mundo, já que, nesse caso, a possibilidade do mundo, a idéia do mundo, o projeto e vontade de Deus a respeito do mundo, ainda permanecem eternos como ainda conjuntamente e para sempre com Deus.

E deve ser dito de uma vez que qualquer dessas admissões significa introduzir o mundo na vida ultra-Trinitária da Divindade como um princípio co-determinante. E nós devemos rejeitar firmes e descompromissadamente qualquer de tais noções. A idéia do mundo, o projeto e vontade de Deus a respeito do mundo, são obviamente eternos, mas em certo sentido não co-eternos, e não conjuntamente de duração para sempre com Ele, porque "distinto e separado," como se fosse de Sua "essência" por Sua volição. Pode-se dizer melhor que a idéia Divina do mundo é eterna por outro tipo de eternidade do que a da Divina essência. Apesar de paradoxal, essa distinção em dois tipos de eternidade é necessária para a expressão da incontestável distinção entre a essência (natureza) de Deus e a vontade de Deus. Essa distinção não introduz nenhum tipo de separação ou divisão no Ser Divino, mas por analogia expressa a distinção entre vontade e natureza, a distinção fundamental tornada tão notavelmente explícita pelos Padres do quarto século. A idéia do mundo tem sua base não na essência, mas na vontade de Deus. Deus não só pensou na idéia de criação34 Ele "pensou nela" em perfeita liberdade; e é só por virtude desse "pensamento" e prazer pelo bom totalmente, livres Dele que Ele como "se tornou" Criador, ainda que desde a eternidade. Mas, de qualquer modo Ele poderia também não ter criado. E qualquer desses "refreamentos" de criação não teriam de modo nenhum, alterado ou empobrecido a natureza Divina, não significaria diminuição, assim como a criação do mundo não enriqueceu o Ser Divino. Assim por meio de opostos, nós podemos chegar perto de um entendimento da liberdade criativa de Deus. Num sentido, seria "indiferente" para Deus o mundo existir ou não — nisso consiste a absoluta "toda-suficiência" de Deus, a Divina autarquia. A ausência do mundo uma espécie de subtração do que é finito do Infinito, o que não afetaria nada a plenitude Divina. E também, a criação do mundo significaria a adição de algo finito ao Infinito, o que de modo nenhum afeta a plenitude Divina. O poder de Deus e a liberdade de Deus devem ser definidos não só como o poder de criar e produzir mas também como a absoluta liberdade de não criar.

Todas essas palavras e pressuposições, são obviamente insuficientes e inexatas. Todas elas têm o caráter de negação e proibição, e não de definições diretas e positivas; mas elas são necessárias para o testemunho daquela experiência de fé na qual o mistério da Divina liberdade é revelado. Com uma inexatidão tolerável, pode-se dizer que Deus é capaz de permitir e tolerar a ausência de qualquer coisa fora Dele. Por tal suposição a imensurabilidade toda do amor Divino não é diminuída, mas ao contrário é posta em relevo. Deus cria pela superabundância absoluta de Sua misericórdia e bondade, e daí o seu prazer pelo bom e liberdade são manifestados. E nesse sentido, pode-se dizer que o mundo é uma espécie de excedente. E mais, um excedente que não enriquece a plenitude Divina de modo nenhum; é como se fosse, alguma coisa "super-rogatória" e superacrescentada, alguma coisa que também poderia não ter existido, e que existe só pela liberdade soberana, toda — perfeita e inefável, e pelo amor de Deus. Isso significa que o mundo é criado e é "a obra" da vontade de Deus, theliseos ergon (θελησεως εργον). Nenhuma revelação exterior pertence à "necessidade" da natureza Divina, à estrutura necessária da vida intra-Divina. E revelação criativa não é alguma coisa imposta a Deus por Sua bondade. É executada em perfeita liberdade, ainda que na eternidade também. Por isso, não se pode dizer que Deus começou a criar, ou "tornou-se" Criador, mesmo porque "ser Criador" não pertence àquelas definições de natureza Divina que dizem respeito à Trindade das Hipóstases. Na imutabilidade permanente do Ser Divino não há qualquer originação, nem qualquer vir-a-ser, nem qualquer seqüência. E apesar disso há um tipo de ordem harmônica toda-perfeita que é parcialmente cognoscível e expressável no nível dos nomes Divinos. Nesse sentido, Santo Atanásio o Grande usava dizer que "criar, para Deus é secundário, e gerar, primário," que "o que é natureza (essência)" antecede "o que é volição"35 Pode-se admitir distinções dentro da própria co-eternidade e imutabilidade do Ser Divino. Na completamente simples vida Divina há uma absoluta e racional ou lógica ordem [taxis, ταξις] de Hipóstases, que é irreversível e imutável pela simples razão de que existe um "primeiro princípio" ou "fonte" de Divindade, e existe a numeração de Primeira, Segunda, e Terceira Pessoas36. E da mesma forma é possível dizer que a estrutura Trinitária é antecedente à vontade e pensamento de Deus, porque a vontade Divina é a vontade comum e indivisa da Santíssima trindade, que é também antecedente a todos os atos e "energias" Divinas. Mas ainda mais do que isso, a Trindade é auto-revelação interna da natureza Divina. As propriedades de Deus são também revelações do mesmo tipo, mas em sua descoberta particular Deus é livre. A imutável vontade de Deus postula livremente a criação, e mesmo a idéia de criação. Seria um erro tentador olhar o "pensamento" do mundo por Deus como uma "criação ideal," porque a idéia do mundo e o mundo de idéias estão totalmente em Deus, εν τω Θεω, e em Deus não há, e não pode haver, nada do criado. Mas essa ambígua noção de "criação ideal" define com grande clareza a completa distinção entre a necessidade do Ser Trinitário de um lado e a liberdade do projeto de Deus — Seu prazer pelo bom referente à criação — do outro lado. Aí permanece uma absoluta e irremovível distinção, a negativa da qual conduz a imaginar toda economia criada como feita de atos e condições essenciais que revelam a natureza Divina como de necessidades, e isso conduz a elevar o mundo, ao menos o "mundo inteligível" [kosmos noitos, κοσμος νοητος] a uma altura imprópria. Pode-se, com permissível ousadia, dizer que na Divina idéia da criação há um tipo de contingência, e que se é eterna, não é uma eternidade de essência, mas uma eternidade livre. Poderíamos esclarecer a liberdade do projeto de Deus — Seu prazer pelo bom — para nós mesmos pela hipótese de que essa idéia poderia não ter sido postulada de todo. Certamente, é um casus irrealis, mas não há contradição nele. Certamente, uma vez que Deus "pensou" ou postulou tal idéia, Ele teve suficiente razão para fazer isso.

No entanto, pensa-se que Agostinho estava certo em proibir qualquer pesquisa para a "causa da vontade de Deus"37 Mas ela (a vontade) não é obrigada por nada e preordenada por nada. A vontade Divina não é constrangida por nada para "pensar" o mundo. Desde a eternidade, a Divina Mente, rapsodiou São Gregório Teólogo "contempla a desejável luz de Sua própria beleza, o igual e igualmente perfeito esplendor da triplamente raiada Divindade...A Mente criadora-do-mundo em Seus vastos pensamentos também reflete sobre os padrões do mundo que Ele criou, sobre o cosmos que foi produzido só depois, mas que para Deus, mesmo então estava presente. Tudo, com Deus, está diante de Seus olhos, tudo que será, que era, e que é agora...Para Deus tudo flui em um, e tudo é mantido pelos braços da grande Divindade" 38

"A luz desejável" da beleza Divina não seria aumentada por esses "padrões do mundo," e a Mente "os faz" somente pela superabundância de amor. Eles não pertencem ao esplendor da Trindade; eles são postulados pela Sua vontade e seu prazer pelo bom. E esses "padrões do mundo" são em si mesmos um excesso e um dom superacrescentado ou "bônus" dado por Ele, Que é abençoadíssimo Amor. Nesse prazer pelo bom de Sua vontade de criar o mundo, a infinita liberdade de Deus é manifestada.

Por isso Santo Atanásio diz, "O Pai cria tudo, pelo Verbo, no Espírito" 39 — Criação é um ato comum e indivisível da Santíssima Trindade. E Deus cria por pensamento, e o pensamento torna-se ato (κτζει δε ενοων και το εννοημα εργου υφισταται), diz São João Damasceno.40 "Ele contempla todas sa coisas antes delas serem, desde a eternidade ponderando-as em Sua mente; daí cada coisa recebe seu ser em um tempo determinado de acordo com Seu pensamento fora do tempo e decisivo, que é predestinada, imagem e padrão (a coisa)" (κατα την θελητικην αυτου αχρονον εννοιαν ητις εστι προορισμος και παραδειγμα)41. Esses padrões e protótipos de coisas que estão para ser constituem a "deliberação pré-temporal e imutável" de Deus, na qual a cada e a todas as coisas é dado o seu caráter distintivo [echarakterizeto, εχαρακτειριζετο] antes delas serem. todas as coisas que estão pré-ordenadas por Deus por antecipação e então trazidas à existência (η βουλη αυτου η προαιωνιος και αει ωσαυτως εχουσα)42. Essa "deliberação" de Deus é eterna e imutável, pré-temporal e sem começo — [anarkzos, αναρχος] — já que todas as coisas Divinas são imutáveis. E essa é a imagem de Deus, a segunda forma de imagem, a imagem virada para a criação43. São João Damasceno está se referindo ao Pseudo-Dionísio. Esses padrões criativos, diz o Aeropagita, "são as bases pré-existentes todas juntas em Deus, e juntas compõe os poderes que fazem seres em entidades, poderes que a teologia chama de ‘pré-destinações’, Divinas e beneficentes’, decisões que são determinativas e criativas de todas as coisas, de acordo com o que Ele Que está acima dos seres pré-ordenou e produziu tudo o que existe" (Παραδειματα δε φαμεν ειναι τους εν Θεω των οντων ουσιοποιους και ενιαιως προυφεστωτας λογους, ους η Θεολογια προορισμους καλει, και Θεια και αγαθα θεληματα, των οντων αφοριστικα και ποιητκα καθ ους ο Υπερουσιος τα οντα παντα και προωρισε και παρηγαγεν).44 De acordo com São Máximo Confessor esses tipos e idéias são os Divinos todo-perfeitos e eternos pensamentos do Deus eterno (νοησεις αυτοτελεις αιδιοι του αιδιου Θεου).45 Essa deliberação eterna é o projeto e decisão de Deus a respeito do mundo. Ela deve ser rigorosamente distinguida do mundo em si. A idéia Divina de criação não é a criação em si; ela não é a substância da criação; ela não é a portadora do processo cósmico; e a "transição" do "projeto" [ennoima, εννοημα] para "ato" [ergon, εργον] não é um processo dentro da idéia Divina, mas o aparecimento, formação, e a realização de outro substrato, de uma multiplicidade de sujeitos criados. A idéia Divina permanece imutável e não-mudada, ela não é envolvida no processo de formação. Ela permanece sempre fora do mundo criado, transcendendo-o. O mundo é criado de acordo com a idéia, de acordo com os padrões — é a realização dos padrões — mas esses padrões não estão sujeitos ao vir-a-ser. O padrão é uma norma e uma meta estabelecida em Deus. Essa distinção e distância nunca são abolidas, e por conseqüência a eternidade do padrão, que é fixo e nunca está envolvido em mudança temporal, é compatível com o início temporal, com o entrar-no-ser dos portadores dos decretos externos. "As coisas antes do seu começo são como se fossem não-existentes," disse Santo Agostinho, utiquae non erant. E ele se explica: elas tanto eram quanto não eram antes que fossem originadas; "elas eram no conhecimento de Deus: mas não eram na sua natureza" — erant in Dei scientia, non erant in sua natura.46 De acordo com São Máximo Confessor, seres criados "são imagens e símiles das idéias Divinas"47 nas quais eles se tornam "participantes"48 Na criação, o Criador realiza, "torna substancial" e "revela" o Seu conhecimento, pré-existente e eterno em Si próprio49 Na criação há projetada do nada uma nova realidade que se torna a portadora da idéia Divina, e deve realizar essa idéia em seu próprio vir-a-ser. Nesse contexto a tendência panteística da ideologia Platônica e da teoria Estóica de "razões seminais" [spermatiki logi, σπερματικοι λογοι] são conjuntamente superadas e evitadas. Pois para o Platonismo a identificação da "essência" de cada coisa com sua idéia Divina é característica, o dote das substâncias com as propriedades e predicados absolutos e eternos (sem começo), assim como a introdução da "idéia" nas coisas reais. Ao contrário, o núcleo criado das coisas deve ser distinguido rigorosamente da idéia Divina das coisas. Só desse modo mesmo o mais sequaz dos realismos lógicos fica livre de um odor "panteísta"; a realidade do todo será nada mais do que a realidade criada. Junto com isso, também o pan-logismo é superado: o pensamento de uma coisa bem como o Divino pensamento-projeto referente a essa coisa não são sua "essência" ou núcleo, mesmo porque a essência em si é caracterizada por logos λογος, [logikos, λογικος]. O padrão Divino nas coisas não é a "substância" ou "hipóstase" delas; não é o veículo das qualidades e condições delas. Ou melhor, ele deve ser chamado de a verdade da coisa, seu intelecto transcendental. Mas a verdade de uma coisa e a substância desa coisa, não são idênticas50

III.

A aceitação da absoluta condição de criatura e da não-auto-suficiência do mundo conduz a se distinguir dois tipos de predicados e atos em Deus. Na verdade, nós atingimos o limite de nosso entendimento, e todas as palavras se tornam, como se fossem, mudas e inexatas, recebendo um sentido apofático, proibitivo, e não um sentido catafático, indicativo. Entretanto, o exemplo dos santos Padres encoraja uma especulativa confissão de fé. Como disse, uma vez, o Metropolita Philaret, "Nós devemos por todos os meios não considerar a sabedoria, mesmo aquela escondida em mistério,como estranha e além de nós, mas com humildade devemos edificar nossas mentes para a contemplação das coisas divinas"51 Somente, em nossas especulações não devemos avançar além dos limites da revelação positiva, e devemos nos limitar a interpretação da experiência e da regra de fé, presumindo não fazer mais do que discernir e esclarecer aquelas pressuposições inerentes pelas quais as confissões de dogmas se tornem possíveis como verdades inteligíveis.. E deve ser dito que toda estrutura da doutrina da fé encoraja essas distinções. Em essência, elas já estão dadas na distinção antiga e primária entre "teologia" e "economia." Desde o começo da história Cristã, os Padres e doutores da Igreja se esforçaram em distinguir clara e agudamente entre aquelas definições e nomes que se referiam a Deus no plano "teológico" e aquelas usadas no plano "econômico." Por detrás disso está a distinção entre "natureza" e "vontade." E ligada com isso está a distinção em Deus entre "essência" [usia, ουσια] e "aquilo que circunda a essência," "aquilo que é ligado a natureza." Uma distinção, mas não uma separação.

"O que nós dizemos afirmativamente de Deus nos mostra," como São João Crisóstomo explica, "não Sua natureza, mas somente o que é relacionado com Sua natureza" (ου τυν φυσιν, αλλα τα περι τυν φυσιν)52 "alguma coisa que acompanha a Sua natureza" [u physin, alla ta para physin, τι των παρεπομενων την φυσει].53 E "o que é por essência e natureza, isso é inatingível e incognoscível"54 São João expressa aqui a assunção básica e constante de toda teologia Oriental: a essência de Deus é inatingível; somente os poderes e operações de Deus são acessíveis ao conhecimento55 E como interessa colocar, há alguma distinção entre elas. Essa distinção é ligada com a relação de Deus com o mundo. Deus é cognocível e atingível somente quando Ele se vira para o mundo, só por Sua revelação para o mundo, somente por Suas economia e dispensação. A vida Divina interna é obstruída pela "luz inaproximável," e é conhecida somente ao nível da "teologia apofática," com a exclusão de ambíguas e inadequadas definições e nomes. Na literatura do período ante-Niceno, essa distinção freqüentemente tinha um caráter ambíguo e borrado. Motivos cosmológicos eram freqüentemente usados na definição de relações intra-Trinitárias, e a Segunda Hipóstase era freqüentemente definida a partir da perspectiva da manifestação ou revelação de Deus para o mundo, como o Deus da revelação, como o Verbo Criativo. E daí, a incognoscibilidade e inacessibilidade eram atribuídas primariamente à Hipóstase do Pai como sendo não-revelável e inefável. Deus revela-Se somente no Logos, na "Palavra falada" [logos prophorikos, λογος προφορικος], como "na idéia e poder ativo" emitindo para construir a criação56 Ligada com isso estava a tendência ao sub-ordenamento na interpretação teológica ante-Nicena do dogma Trinitário. Só os Padres do século quarto obtiveram em sua teologia Trinitária a base para uma formulação adequada da relação de Deus com o mundo: a toda, inteira e indivisa "operação" [energie, ενεργειαι] da Trindade consubstancial é revelada nos atos e obras de Deus. Mas a "essência" una [ousia, ουσια] da Trindade indivisível permanece além do alcance do conhecimento e compreensão. Suas obras, como São Basílio o Grande explica, revelam o poder e sabedoria de Deus, mas não Sua própria essência57 "Nós afirmamos," ele escreveu para Amphiloquio de Icônio, "que nós conhecemos o nosso Deus por Suas energias, mas nós não presumimos que seja possível que nos aproximemos da própria essência. Porque apesar de Suas energias descerem até nós, Sua essência permanece inacessível." E essas energias são multiformes, enquanto a essência é simples58 A essência de Deus é impenetrável para o homem, e é conhecida só pelo Único-gerado Filho e pelo Espírito Santo59 Nas palavras de São Gregório o Teólogo, a essência de Deus é "o Santo dos Santos, fechado até para os Serafins, e glorificado pelos três "Santos" que vem juntos em um ‘Senhor’ e ‘Deus’." E a mente criada é capaz de, muito imperfeitamente, "esboçar" algum pequeno "diagrama da verdade" no infinito oceano da entidade Divina, mas baseado não no que Deus é, mas no que está à volta Dele [ek ton peri avton, εκ των περι αυτον].60 "A essência Divina, totalmente inacessível e comparável com nada," diz São Gregório de Nissa, "é cognoscível só através de Suas energias"61 E todas as nossas palavras a respeito de Deus denotam não Sua essência mas Suas energias62 A Essência Divina é inacessível, inominável, e inefável. Os nomes variados e relativos de Deus não nomeiam Sua essência ou natureza mas Seus atributos. Ainda assim os atributos de Deus não são simples sinais ou marcas inteligíveis ou cognoscíveis que constituem nossa noção humana de Deus; eles não são abstrações ou fórmulas conceituais. Eles são energias, poderes, ações. Eles são reais, essenciais, vivificantes manifestações da vida Divina — imagens reais da relação de Deus com a criação, ligadas com a imagem da criação no eterno conhecimento e deliberação de Deus. E isso é "o que pode ser conhecido de Deus" (το γνωστον του Θεου, Ro 1:19). Isso é, como se fosse, o domínio particular do indiviso porém "muito-nomeado" Ser Divino, "de Divinas radiação e atividade," — η Θεια ελλαμψις και ενεργεια, como São. João Damasceno diz, seguindo a Aeropagítica63 De acordo com a palavra Apostólica, "porque Suas coisas invisíveis desde a criação do mundo, tanto o Seu eterno poder, como a Sua Divindade, se entendem, e claramente se vêem pelas coisas que estão criadas,..." (η τε αιδιος αυτου δυναμις και Θειοτης, Ro 1:20). E essa é a revelação ou manifestação de Deus: "Deus Se manifestou neles" (Ro. 1:19; ephanerosen, εφανερωσεν). O Bispo Silvestre explica corretamente ao comentar essas palavras Apostólicas: "As coisas invisíveis de Deus, sendo, na verdade existentes e não meramente imaginárias, tornam-se visíveis não por um modo ilusório, mas seguramente, verdadeiramente; não como um fantasma, mas em Seu eterno poder; não meramente nos pensamentos dos homens, mas no próprio fato — a realidade de Sua Divindade" 64 Elas são visíveis porque manifestadas e reveladas. Porque Deus está presente em todo lugar, não fantasmagoricamente, não remotamente, mas realmente presente em todo lugar — "Tu que está presente em tudo, e enches tudo, Tesouro de bens e Doador da vida." Essa providencial ubiqüidade (diferente da presença "particular" ou carismática de Deus, que não está em todo lugar) é uma "forma particular de existência" de Deus, distinta da "forma de Sua existência de acordo com Sua própria natureza" 65 E além disso, essa forma é real ou subsistente — é uma presença real, não meramente an omnipraesentia operativa, sicut agens adest ei in quod agit. E se nós "particularmente não entendemos" ( na frase de São João Crisóstomo66) essa misteriosa onipresença, e essa forma de Ser divino ad extra, mesmo assim é indiscutível que Deus "está em todos os lugares, completa e inteiramente, "tudo em tudo e em todos," como São João Damasceno disse (ολον ολικως πανταχου ον, ολον εν πασι).67 Os atos vivificantes de Deus são o Próprio Deus — uma afirmação que elimina separação mas não abole distinção68 Na doutrina dos padres Capadócios a respeito de "essência" e "energias" nós encontramos inserida em elaborada e sistemática forma as idéias do misterioso autor da Aeropagítica que iria determinar todo o subseqüente desenvolvimento da teologia Bizantina. Dionisio baseou-se na estrita distinção entre aqueles "Nomes Divinos" que se referem à vida intra-Divina e Trinitária e aqueles que expressam a relação de Deus ad extra69 Mas ambas as séries de nomes contam a respeito da imutável Realidade Divina. A vida intra-Divina é escondida da nossa compreensão, é conhecida somente através de negações e proibições70, e na frase de São Gregório Teólogo "quem vendo Deus compreendeu o que foi visto, não O viu" 71. E no entanto Deus realmente Se revela e age e está presente na criação através dos Seus poderes e idéias — em "providências e graças que fluem do Deus incomunicável, que jorram numa corrente abundante, e na qual todas as coisas existentes participam"72 "numa processão produtora-de-essência," [usiopion proodon, ουσιοποιον προοδον], numa "providência que produz boas coisas," [agathopion pronian, αγαθοποιον προνοιαν], que são distinguíveis mas não separadas da entidade Divina "que ultrapassa a entidade," do próprio Deus, como diz São Máximo Confessor em sua scholia73 A base dessa "processões" que são, como se fossem, processões de Deus em Suas providências de fora de Si próprio — [eks eavtu genete, εξω εαυτου γινεται] — é Sua bondade e amor74 Essas energias não se misturam com as coisas criadas, e não são, em si, essas coisas, mas são somente seus princípios básicos e vivificantes; elas são os protótipos, as predeterminações, as razões, os logi (λογοι) e decisões Divinas a respeito delas, e das quais elas são participantes e devem ser "comunicantes" 75 Elas são não só o "princípio" e a "causa," mas também o "desafio" e o objetivo que acena e que está além e acima de todos os limites. Seria difícil explicar mais fortemente tanto a distinção entre e a indivisibilidade da Divina Essência e Divinas energias do que foi feito na Aeropagítica (το ταυτον και το ετερον).76 As energias divinas são aquele aspecto de Deus que é voltado para a criação. Não é um aspecto imaginado por nós; não é o que nós vemos e como nós o vemos, mas é a real e viva contemplação do próprio Deus, pelo qual Ele ordena, vivifica e preserva todas as coisas — a contemplação da Força Toda-Poderosa e Amor Superabundante.

A doutrina das energias de Deus recebeu sua formulação final na teologia Bizantina do século quatorze, e acima de tudo com Gregório Palamas. Ele se baseia na distinção entre Graça e Essência, "as divinas e deificantes radiação e graça não são a essência, mas a energia de Deus" (η Θεια και Θεοποις ελλαμψις και χαρις ουκ ουσια αλλ ενεργια εστι Θεου)77. A noção de energia Divina recebeu definição explicita na série de Sínodos ocorridos no século quatorze em Constantinopla. Há uma real distinção, mas não separação, entre a essência ou entidade de Deus e Suas energias. Essa distinção é manifestada, acima de tudo, pelo fato que a Entidade é absolutamente incomunicável e inacessível às criaturas. As criaturas têm acesso e se comunicam somente com as Divinas energias. Mas com essa participação elas entram numa genuína e perfeita comunhão e união com Deus; elas recebem "deificação"78 Porque isso é "a natural e indivisível energia e poder de Deus," (φυσικη και αχωριστος ενεργεια και δυναμις του Θεου)79 "é a Divina e comum energia e poder do Tri-Hipostático Deus"80 O ativo poder Divino não se separa de sua Essência. Essa "processão" [proiene, προιεναι] expressa uma "inefável distinção," que de maneira nenhuma perturba a unidade "que supera a essência"81 O Poder ativo de Deus não é a própria "substância" de Deus, mas também não é um "acidente" [symvevikos, συμβεβηκος]; porque é imutável e co-eterno com Deus, existe antes da Criação e revela a vontade criativa de Deus. Em Deus não há só essência, mas também o que não é essência, apesar de não ser um acidente — a vontade e o poder Divino — Sua providência e autoridade, reais, existenciais e produtoras-de-essência.82 São Gregório Palamas enfatiza que qualquer recusa em se fazer uma distinção real entre a "essência" e "energia" apaga e borra o limite entre geração e criação — ambas então parecem ser atos da essência. E como São Marcos de Éfeso explicou, "Ser e energia, coincidem completa e totalmente em necessidade equivalente. A distinção entre essência e vontade [thelisis, θελησις] é abolida; então Deus só gera e não cria, e não exerce a Sua vontade. Então a diferença entre pré-conhecimento e o fazer real torna-se indefinido, e a criação parece ter sido criada coeternamente"83 A essência é a auto-existência inerente de Deus; e a energia é Suas relações com os outros [pros eteron, προς ετερον]. Deus é vida, e tem vida; é Sabedoria, e tem Sabedoria; e assim por diante. A primeira série de expressões se refere à essência incomunicável, a segunda às inseparavelmente distintas energias da essência una, que descem sobre a criação.84 Nenhuma dessas energias é hipostática, nem hipóstase em si, e sua multiplicidade incalculável não introduzem nenhuma composição no Ser Divino.85 A totalidade das "energias" Divinas constitui Sua vontade pré-temporal, Seu projeto — Seu prazer pelo bom — a respeito do "outro," Sua deliberação eterna. Esse é Deus em Si, não Sua essência, mas Sua vontade86 A distinção entre "essência" e "energias" — ou poderia ser dito, entre "natureza" e "graça" [physis, φυσις and haris, χαρις] — corresponde à misteriosa distinção em Deus entre "necessidade" e "liberdade," entendida no sentido adequado. Em Sua misteriosa essência Deus é, como se fosse, "necessitado" — não na verdade, por qualquer necessidade de constrangimento, mas por uma espécie de necessidade de natureza, que é, nas palavras de Santo Atanásio o Grande, "acima e antecedente à livre escolha" 87 E com permissível ousadia nós podemos dizer: Deus só pode ser a Trindade de pessoas. A Tríade de Hipóstases está acima da Vontade Divina, é, como se fosse, "a necessidade" ou "a lei" da natureza Divina. Essa "necessidade" interna é expressa tanto na noção de "consubstanciabilidade" como na da perfeita indivisibilidade das Três Pessoas como Elas co-existem e se itercompenetram umas nas outras. No julgamento de São Máximo Confessor, seria inadequado e infrutífero introduzir a noção de vontade na vida interna da Divindade para a definição das relações entre as Hipóstases, porque as Pessoas da Santíssima Trindade existem juntas e acima de qualquer tipo de relação e ação, e por Seu Ser determinam as relações entre si.88

A comum e indivisa "natural" vontade de Deus é livre. Deus é livre em Suas operações e atos. E por isso para uma confissão dogmática das relações recíprocas das Divinas Hipóstases, devem ser encontradas expressões que venham a excluir quaisquer motivos cosmológicos, qualquer relação entre ser criado e seu destino, qualquer relação com criação ou re-criação. O fundamento do ser Trinitário não está na economia ou revelação de Deus ad extra. O mistério da vida intra-Divina deve ser concebido em total abstração de dispensação; e as propriedades hipostáticas das Pessoas devem ser definidas em separado de toda relação com a existência da criação, e somente de acordo com a relação que subsiste entre Elas próprias. A relação viva de Deus — precisamente como Tríade — com a criação não é assim, de maneira nenhuma obscurecida. Ao contrário, uma perspectiva ajustada é então estabelecida. O significado todo da definição dogmática da Divindade de Cristo como foi interpretado pela Igreja de fato baseia-se na exclusão de todos os predicados relativos a condescendência que O caracteriza como Criador e Redimidor, como Demiurgo e Salvador, para entender Sua Divindade à luz das Divinas, Vida, Natureza e Essência, internas. A relação criativa do Verbo com o mundo é explicitamente confessada no Credo Niceno "por Quem todas as coisas foram feitas." E coisas foram feitas não só porque o Verbo é Deus, mas também porque o Verbo é o Verbo de Deus, o Verbo Divino. Ninguém foi tão enfático em separar o momento demiúrgico na ação de Cristo do dogma da geração eterna do Verbo como Santo Atanásio o Grande. A geração do Verbo não pressupõe a existência — e nem mesmo o projeto — do mundo. Mesmo que o mundo não tivesse sido criado, o Verbo existiria na plenitude de Sua Divindade, porque o Verbo é Filho por natureza [Yos kata physin, υιος κατα φυσιν]. "Se tivesse agradado a Deus não criar qualquer criatura, mesmo assim o Verbo estaria com Deus, e o Pai estaria Nele," como disse Santo Atanásio; e isso porque as criaturas não podem receber seu ser de outra forma que não seja através do Verbo89 As criaturas são criadas pelo Verbo e através do Verbo, "na imagem" do Verbo, "na imagem da imagem" do Pai, como São Metódio de Olimpo expressou90 A criação pressupõe a Trindade, e o selo da Trindade está em toda a criação; ainda assim não se deve introduzir motivos cosmológicos na definição do Ser intra-Trinitário. E ainda assim deve-se dizer que a plenitude natural da essência Divina está contida na Trindade, e que portanto o projeto — Seu gosto pelo bom — a respeito do mundo é um ato criativo, uma operação da vontade — uma abundância de amor Divino, um dom e uma graça. A distinção entre os nomes de "Deus em Si" em Seu ser eterno, e aqueles nomes que descrevem Deus em revelação, "economia," ação, não é somente uma distinção subjetiva de nosso pensamento analítico; ela tem um significado objetivo e ontológico, e expressa a absoluta liberdade da criatividade e operação divinas. Isso inclui a "economia" da salvação. A Divina Deliberação a respeito da salvação e redenção é um decreto eterno e pré-temporal, "um propósito eterno" (Ef. 3:11), "o mistério que desde o começo do mundo estava escondido em Deus" (Ef. 3:9). O Filho de Deus estava desde a eternidade destinado à Encarnação e à Cruz, e portanto Ele é o Cordeiro "Que verdadeiramente foi preordenado desde antes da fundação do mundo" (1Pe.1:19-20), "O Cordeiro sacrificado desde a fundação do mundo" (Apoc.13:8). Mas esse propósito [prothesis, προθεσις] não pertence a necessidade "essencial" da natureza Divina; não é um "trabalho da natureza," mas a imagem condescendência econômica," como diz São João Damasceno91 Ele é um ato do amor Divino — pois Deus amou tanto o mundo.... E sendo assim, os predicados referentes à economia de salvação não coincidem com aqueles predicados pelos quais o Ser Hipostático da Segunda Pessoa é definido. Na revelação Divina não há constrangimento, e isso é expresso na noção da perfeita Beatitude Divina. Revelação é um ato de amor e liberdade, e por isso não introduz modificações na natureza Divina92 Ela não introduz modificação simplesmente porque não há, de todo, bases "naturais" para a revelação. A única razão para a existência do mundo consiste na liberdade de Deus, na liberdade do Amor.

IV.

Desde a eternidade Deus "pensa" a imagem do mundo, e esse livre gosto pelo bom Dele é uma deliberação imutável. Mas essa imutabilidade da vontade cumprida em nada implica em sua necessidade. A imutabilidade da vontade de Deus está enraizada em Sua suprema liberdade. E por isso ela não limita Sua liberdade na criação. Seria muito adequado que se lembrasse aqui da distinção escolástica entre potentia absoluta e potentia ordinata.

E em conformidade com o projeto — o prazer pelo bom — criação, junto com o tempo, são "construídos" do nada. Através do temporal tornar-se, a criação deve avançar por sua própria ascensão livre de acordo com o padrão da Divina economia a seu respeito, de acordo com o padrão da imagem pré-temporal e da predestinação para ela. A imagem Divina do mundo sempre permanece acima e além da criação por natureza. A criação é limitada por sua imutabilidade e inseparabilidade, é limitada até por sua própria resistência a si. Porque essa "imagem" ou "idéia" da criação é simultaneamente a vontade de Deus [thelitiki ennia, θελητικη εννοια] e o poder de Deus pelo qual a criação é feita e sustentada; e a deliberação beneficente do Criador não é anulada pela resistência da criação, mas por essa resistência torna-se, para os rebeldes, um Julgamento, a força da ira, um fogo consumidor. Nas, imagem e deliberação Divinas, cada criatura — isto é, cada hipóstase criada em sua forma imperecível e irreproduzível — está contida. Fora da eternidade Deus vê e quer, por seu prazer pelo bom, cada um dos seres na totalidade de seu destino e aspectos, até mesmo vendo seu futuro e pecado. E se, de acordo com a mística intuição de São Simeão o Novo Teólogo, no tempo que virá "Cristo contemplará todas as miríades de Santos, tirando Seu olhar de nenhum, de maneira que cada um deles verá que Ele está olhando para ele, falando com ele, e saudando-o," e ainda "enquanto permanecendo imutável. Ele verá diferente para um e para outro" 93 — e igualmente fora da eternidade, Deus em sua deliberação por Seu prazer pelo bom, contempla todas as inumeráveis miríades de hipóstases criadas, as quer, e para cada uma delas Se manifesta de maneira diferente. E nisso consiste a "insuperável distribuição" de Sua graça ou energia, "miriadamente hipostática" na ousada frase de São Gregório Palamas94 porque essa graça ou energia é beneficentemente concedida a mais de milhares de miríades de hipóstases. Cada hipóstase, em seu próprio ser e existência, é selada por um raio particular do amor e vontade do prazer pelo bom de Deus. E nesse sentido, todas as coisas estão em Deus — em "imagem" [en idea ke paradigmati, εν ιδεα και παραδειγματι] mas não por natureza, e "todos" os seres criados estando infinitamente remotos da Natureza Incriada. Essa condição remota é superada pelo amor Divino, sua impenetrabilidade sendo eliminada pela Encarnação do Verbo Divino. No entanto, a condição remota permanece. A imagem da criação em Deus transcende a natureza criada e não coincide com "a imagem de Deus" na criação. "Qualquer descrição que se de da "imagem de Deus" no homem, é um momento característico de sua natureza criada — ela é criada. É uma "semelhança," uma imagem no espelho95 Mas acima da imagem a Proto-imagem sempre brilha, às vezes com uma alegre, às vezes com uma ameaçadora luz. Ela brilha como uma chamada e uma norma. Há na criação uma meta desafio supra-natural colocada acima de sua própria natureza — a meta desafio, baseada em liberdade, numa participação livre e em uma união com Deus. Esse desafio transcende a natureza criada, mas somente respondendo a ela é essa própria natureza revelada em sua plenitude. Essa meta desafio é um objetivo, um objetivo que só pode ser realizado através da auto-determinação e esforços da criatura. Portanto o processo do tornar-se criado é real em sua liberdade, e livre em sua realidade, e é por esse tornar-se que o-que-não-era atinge realização e é conseguido. Porque ele é guiado pela meta desafiadora. Nela há espaço para a criação, construção e reconstrução — não só no sentido de recuperação, mas também no sentido de gerar o que é novo. O escopo da construtividade é definido pela contradição entre a natureza e a meta. Num certo sentido, essa própria meta é "natural" e própria para quem realiza atos construtivos, de maneira que o atingimento dessa meta é de algum modo a realização do sujeito em si próprio. E entretanto esse "Eu" que é realizado através da construtividade não é o "natural" e empírico "Eu," visto que qualquer realização de si próprio é uma ruptura — um salto do plano da natureza para o plano da graça, porque essa realização é a aquisição do Espírito, é a participação em Deus. Somente nessa "comunhão" com Deus o homem torna-se "ele próprio"; separado de Deus e em auto-isolamento, ao contrário, ele cai para um plano mais baixo que ele próprio. Mas ao mesmo tempo, ele não se realiza meramente fora de si próprio. Porque a meta está além da natureza, e é um convite para um vivo e livre encontro e união com Deus. O mundo é substancialmente diferente de Deus. E por isso o plano de Deus só pode ser realizado pelo tornar-se criado — porque esse plano não é um substrato ou substantia que vem a ser e se autocompleta, mas é o padrão e coroa de "outros" que-vem-a-ser. De outro lado, o processo criativo não é por essa razão um desenvolvimento, ou melhor, não só um desenvolvimento; seu significado não consiste nos simples desdobramentos e manifestações dos fins "naturais" inatos, ou não só nisso. Mais claramente, a definitiva e suprema auto-determinação da natureza criada emerge de seu zeloso impulso para se ultrapassar em uma kinisis yper physin κινησις υπερ φυσιν, como diz São Máximo96 E uma ungidora chuva de graça responde a essa inclinação, coroando os esforços das criaturas.

O limite e meta do esforço da criatura é a divinização [theosis, θεωσις] ou deificação [theopiisis, θεοποιησις]. Mas mesmo nisso, a imutável distância entre as naturezas permanecerá: qualquer "transubstanciação" da criatura está excluída. É verdade que de acordo com a frase de São Basílio o Grande preservada por São Gregório o Teólogo, a criação "foi ordenada a se tornar Deus97 Mas essa "deificação" é somente comunhão com Deus, participação em Sua vida e dons, e por ai um tipo de aquisição de uma certa similitude à Realidade Divina. Ungido e selado pelo Espírito, o homem se torna "similar a Deus" [symmorphi Theo, συμμορφοι Θεω]98 Com a Encarnação do Verbo o primeiro fruto da natureza humana é inalteravelmente gravado na Vida Divina, e dai para todas as criaturas o caminho de comunhão com essa Vida está aberto, o caminho de adoção por Deus. Na frase de Santo Atanásio, o Verbo "tornou-Se para nos deificar [theopiisi, θεοποιηση] em Si próprio"99, para que "os filhos dos homens possam se tornar os filhos de Deus"100 Mas essa "divinização" é adquirida porque Cristo, o Verbo Encarnado, nos fez "receptivos ao Espírito," de modo que Ele preparou para nós a ascensão e a ressurreição assim como a moradia e apropriação do Espírito Santo"101 Através do "Deus portador-de-carne" nós nos tornamos "homens portadores-do-Espírto": nós nos tornamos filhos "pela graça," "filhos de Deus na semelhança do Filho de Deus"102 E assim é recuperado o que estava perdido desde o pecado original, "a transgressão do mandamento tornou o homem naquilo que ele era por natureza"103, sobre a qual ele havia sido elevado em sua primeira adoção ou nascimento por Deus, coincidindo com sua criação inicial104 A expressão tão cara a Santo Atanásio e São Gregório o Teólogo, Theon genesthe (Θεον γενεσθαι),105encontra sua explicação complementar num dizer de dois outros Santos Capadócios: omiosis pros ton Theon (ομοιωσις προς τον Θεον).106 Se Macário do Egito ousa falar da "mudança" das almas-portadoras-do-Espírito "para natureza Divina," da "participação na natureza Divina,"107 ele no entanto entende essa participação como uma krasis di olon κρασις δι ολον, isto é, como uma certa "mistura" das duas, preservando as propriedades e entidades de cada uma em particular108 Mas ele também enfatiza que "a Divina Trindade vem para morar naquela alma que, por cooperação da Graça Divina, mantem-se pura — Ela vem para morar não como Ela é em Si, porque Ela é incontida por qualquer criatura — mas de acordo com a medida da capacidade e receptividade do homem109 Fórmula explícita a respeito disso nunca foi estabelecida toda de uma vez, mas desde o início a inultrapassável distância entre as naturezas foi rigorosamente marcada, e a distinção entre as noções kata usian, κατ ουσιαν (ou κατα φυσιν) e kata metusian, κατα μετουσιαν foi rigorosamente observada e mantida. O conceito de "divinização" foi cristalizado somente quando a doutrina das "energias" de Deus foi explicada de uma vez por todas. Nesse aspecto o ensinamento de São Máximo é significativo. "A salvação daqueles que são salvos é realizada pela graça e não por natureza"110 e se "em Cristo a plenitude inteira da Divindade habita corporalmente de acordo com a essência em nós, ao contrário não há a plenitude da Divindade de acordo com a graça"111 A aguardada "divinização" que virá é uma semelhança pela graça (και φανωμεν αυτω ομοιοι κατα την εκ χαριτος θεωσιν).112 E mesmo nos tornando participantes na Vida Divina, "na unidade do amor," "co-herdando totalmente e inteiramente o todo de Deus," (ολος ολω περιχωρησας ολικως τω Θεω) apropriando-nos de tudo que é Divino, a criatura "no entanto permanece fora da essência de Deus"113 E o que é mais notório nisso é que São Máximo identifica diretamente a graça deificante com o prazer-pelo-bom Divino com respeito à criação, com o criativo fiat114 Em seus esforços para adquirir o Espírito Santo, a hipóstase humana torna-se um veículo e vaso da Graça; de alguma forma é imbuída com ela, de modo que por ela a vontade criativa de Deus se realiza — a vontade que reuniu aquilo-que-não-era para ser para receber aqueles que virão em Sua comunhão. E o criativo prazer-pelo-bom em si a respeito de cada um em particular já é por si uma corrente descendente de Graça — mas nem todo mundo abre para o Criador e Deus que bate na porta. A natureza humana deve ser descoberta livremente através de um movimento de resposta, superando o auto-isolamento de sua própria natureza; e negando o seu ego, como se pode dizer, recebendo essa misteriosa, terrificante e indizível dupla-natureza para qual o mundo foi feito. Pois ele foi feito para ser e tornar-se a Igreja, o Corpo de Cristo.

O significado da história consiste nisso — que a liberdade da criação deve responder aceitando a deliberação pré-temporal de Deus, que ela deve responder em palavras e atos. Na prometida dupla-natureza da Igreja a realidade da natureza criada é afirmada no início. Cristo é a outra, outra natureza querida pelo prazer—pelo-bom e trazida do nada pela liberdade Divina para a própria liberdade da criação. Ela deve se ajustar livremente àquele padrão criativo pelo qual ela vive, move-se e tem seu ser. A criação não é esse padrão, e esse padrão não é a criação. De alguma maneira misteriosa a liberdade humana tornou-se uma espécie de "limitação" da onipotência Divina, porque agradou a Deus salvar a criação não por compulsão, mas somente por liberdade. A criação é "outra," e por isso o processo de ascensão para Deus deve ser realizado por seus próprios poderes — com o auxílio de Deus, seguramente. Através da Igreja os esforços das criaturas são coroados e salvos. E a criação é restaurada em sua plenitude e realidade. E a Igreja segue, ou melhor retrata o mistério e milagre das duas naturezas. Como o Corpo de Cristo, a Igreja é um tipo de "plenitude" de Cristo — como Teófano o Recluso diz — "Assim como a árvore é a plenitude da semente" 115 E a Igreja é unida à Sua Cabeça. "Assim como normalmente não se vê o ferro quando ele está quente rubro, porque as qualidades do ferro estão escondidas completamente pelo fogo" diz Nicolau Cabasilas em seu Commentary on the Divine Liturgy, "assim, se se pudesse ver a Igreja de Cristo em Sua verdadeira forma, como Ela é unida a Cristo e participa em Sua carne, então nós a veríamos como nada mais que o Corpo de Cristo" 116 Na Igreja a criação é confirmada e estabelecida para sempre, para todas as eras, em união com Cristo, no Espírito Santo.

 

Notas e referências.

1. Máximo o Confessor in Lib. de div. nomin. schol., in V. 8,. PG iv, 336.

2. Essa relação é vividamente elucidada por Agostinho, De Genesi ad lit. V. 5, PL xxxiv, 325: factae itaque creaturae motibus coeperunt currere tempora: unde ante creaturura frustra tempora requiruntur, quasi possint inveniri ante tempora tempora ... potius ergo tempora a creatura, quam creatura coepit a tempore; utrumque autem ex Deo; cf. de Genesi c. manich. I. 2 PL xxiv, 174, 175; de Civ. Dei, XI, t, PL xli, 321; quis non videat quod tempora non fuissent, nisi creatura fieret, quae aliquid aliqua mutatione mutaret; c. 322: procul dubio non est mundus factus in tempore, sed cum tempore; Confess. XI, 13, PL xxxii, 815-816 et passim. Cf. P. Duhem, Le Système du Monde, II (Paris, 1914), pp. 462 ff.

3. S. Basílio o Grande em Hexam. h. 1, n. 6, PG xxix, c. 16.

4. St. Gregório de Nissa Or. cath. m., с. 6, PG xlv, c. 28; cf. S. João Damasceno, De fide orth. I, 3, PG xciv, 796: "pois coisas que são originadas com uma mudança [απω τροπης] são definitivamente sujeitas a mudança, seja por corrupção ou por voluntária alteração."

5. Gregório de Nissa De opif. hom. c. XVI, PG xliv, 184; rf. Or. cath. m., c. 21, PG xlv, c. 57: ["A verdadeira transição de não-entidade para existencia é uma mudança, não-existencia tendo sido mudada pelo Divino poder em ser"] (Srawley tradução). Desde que a origem do homem veio "através de mudança," ele necessariamente tem uma natureza mutável.

6. S. João Damasceno De fide orth. II, 1, PG xciv, c. 864. Ουδε γαρ μετα την αναστασιν ημεραις και νυξιν ο χρονος αριθμησεται εσται δε μαλλον μια ημερα ανεσπερος. A passagem toda é de interesse: Λεγεται παλιν αιων, ου χρονος ουδε χρονος τι μερος, ηλιου φορα και δρομω μερουμενον, ηγουν δι ημερων και νυκτων συνισταμενον, αλλα το συμπαρεκτινομενον τοις αιδιοις συνισταμενον, αλλα το συμπαρεκτεινομενον τοις αιδιοις, οιον τι χρονικον κινημα, και διαστημα.

7. S. Gregório de Nazianzo, Or. 29, PG xxxi, 89-81: και ηρκται ου παυτεται.

8. St. Agostinho, De Civ. Dei, XII, c. xv, PL XLI, 363-5.

9. The Works of Philaret, Metropolitan of Moscow, "Discourses and Speeches," vol. III (Moscow, 1877), p. 436, "Address on the Occasion of the Recovery of the Relics of Patriarch Alexey," 1830.

10. St. Agostinho, Confessiones, XI, 4, PL xxxii, c. 812.

11. S. Gregório de Nazianzo, Or. 38, In Theoph., n. 7, PG xxxvi, c. 317.

12. S. João Damasceno, De fide Orth. I, 13, PG xcvi, c. 583 [Russo, I, 183].

13. St. Agostinho, De Genesi ad lit., I, imp. c. 2: non de Dei natura, sed a Deo sit facta de nihile... quapropter creaturam universam neque con-substantialem Deo, neque coaeternam fas est dicere, aut credere. PL xxxiv, c. 221.

14. S. Macarius of Egypt, Hom. XLIX, c. 4, PG xxxiv. c. 816.

15. St. Atanásio, C. arian, Or. 1, n. 20, PG xxvi, c. 53.

16. St. Atanásio, C. arian. Or. 2, п. 2, PG xxvi, c. 152.

17. Ibid., C. arian. Or. I, n. 21, c. 56.

18. Ibid., C. arian. Or. 3, nfl 60ss., c. 448 squ.

19. S. Cirilo de Alexandria, Thesaurus, XV, PG LXXV, c. 276: το γεννημα ... εκ της ουσιας του γεννωντος προεισι φυσικως; — το κτισμα) ... εξωθεν εστιν ως αλλοτριον; ass. xviii, с. 313: το μεν ποιειν ενεργειας εστι φυσεως δε το γενναν; φυσις δε και ενεργεια ου ταυτον.

20. S. João Damasceno De fide orth. I, 8, PG xciv, c. 812-813; cf. St. Atanasio С. arian. or. 2, n. 2, PG xxvi. Ele censura os Arianos por não reconhecerem que καρογονος εστιν αυτη η Θεια ουσια. A mesma expressão é encontrada em escritos de S. Cirilo .

21. St. Gregório de Nazianzo, Or. 45 in S. Pascha, a. 28, PG xxxvi, 661.

22. Ibid., n. 8, col. 632.

23. St. Agostinho, De Genesi ad lit., I, 5, PL xxxiv, c. 250.

24. St. Gregório de Nazianzo, Or. XL in S. Baptism, PG xxxvi, 424.

25. S. João Damasceno, C. Manich n. 14, PG xciv, c. 1597.

26. St. Gregório de Nissa, De anima et resurr., PG XLVI, 93 В.

27. Waddingi, IV, Paris, 1891. Esse discurso todo de Duns Scotus é notável por sua grande clareza e profundidade. Duns Scotus questiona disputatae de rerum principio, quaestio IV, articulus I, n. 3 and 4, — Opera omnia, editio nova juata editionem.

28. Orígenes, De princ. III, 5, 3. PG 327, Tradução inglesa de G. W. Butterworth.

29. V. V. Bolotov, Origen's Doctrine of the Holy Trinity, St. Petersburg, 1879, p. 203.

30. Orígenes, De princ. I, 2, 10, PG 138-9.

31. Ibid., Nota ex Methodic Ol. apud Phot. Bibl. cod., 235, sub linea, n. (40).

32. St. Agostinho, De Civ. Dei, XII, 15, PL XLI, c. 36.

33. S. Metódio, De creatis, apud Phot. Bibl. col. 235, PG cii, c. 1141.

34. St. Gregório de Nazianzo, Or. 45, n. 5, PG xxxvi, c. 629: εννοει; Саrт. 4, theol. IV, De mundo, c. 67-68, PG xxxv II, 421.

35. St. Atanasio, C. arian. Or. 2, п. 2, PG xxvi, c. 152 — δευτερον εστι το δημιουργειν του Θεον, — πολλω προτερον, — το υπερκειμενον της βουλησεως.

36. Of. V. V. Bolotov, "On the Filioque Question, III: The significance of the sequence of the Hypostases of the Holy Trinity according to the view of the Eastern Fathers," Christian Readings [ (Khristianskoe Chtenie) Russo], 1913, Set., pp. 1046-1059.

37. St. Agostinho, De div. quaest. qu. 28, PL XLVI, c. 18: nihil autem majus est voluntatis Dei; non ergo ejus causa quaerenda est.

38. S. Gregório de Nazianzo, Carm. theol. IV — De mundo, v. 67-68, PG xxxvii, 421: κοσμοι τυπους...

39. St. Atanásio, Ad Serap. Ep. III, n. 5, PG xxvi, c. 632.

40. S. João Damasceno, De fide orth. I, 2, PG xciv, c. 865; St. Gregório de Nazianzo, Or. 45 in S. Pascha, n. 5, PG xxxvi, c. 629.

41. S. João Damasceno, De fide orth., I, 9, PG xciv, c. 837.

42. S. João Damasceno De imagin., I, 10, PG xciv, c. 1240-1241.

43. Ibid; c. 1340: "O segundo aspecto da imagem é o pensamento de Deus sobre o assunto do que Ele criará, isto é, Sua deliberação pré-eterna, que sempre permanece igual a ela mesma; pois a Divindade permanece imutável e Sua deliberação é sem começo" [δευτερος τροπος εικονος, η εν το Θεω των υπ αυτου επομενων εννοια, τουτεστιν η προαιωνιος αυτου βουλησις, η αει ωσαυτως εχουσα].

44. Dionisio o Areopagita, De divin. nomin. V, n. 8, PG III, c. 824; cf. c. VII, n. 2, c. 868-869.

45. S. Máximo o Confessor, Scholia in liberus de divine nominitus in cap. V 5, — PG iv, c. 31; cfr. n. 7... Cf. n. 7, с. 324А: "Na causa de todas as coisas, tudo é preconstituido [προυρεστηκεν], como em uma idéia ou protótipo;" n. 8, с. 329A-B: οτι ποιησιν αυτοτελη αιδιον του αιδιου Θεου την ιδεαν, ητοι το παραδειγμα φηοι. Em contraste a Platão, que separou as idéias ou Deus, Dionisio fala de "imagens" e "logoi" em Deus. Cf. A. Brilliantov, The Influence of Eastern Theology on Western Theology in the Works of Eriugene (St. Petersburg, 1898), pp. 157 ff, 192 ff.

46. St. Agostinho De Genesi: ad l.t., I, V, c. 18, PL xxxiv, c. 334; cf. De Trin., I, IX, с. 6 vel s. n. 9, PL XLII, c. 965: alia notitia rei in ipsa se, alia in ipsa aeterna veritate; cf. ibid., I, VIII, c. 4 vel s. n. 7, c. 951-952. See also De div. qu., 83, qu. 46, n. 2., PL XL, c. 30: ideae igitur latine possumus vel formas vel species dicere . . . Sunt namque ideae principales formae quaedam, vel rationes rerum stabiles atque incommutabiles, quae ipsae formatae non sunt, ac per hoc aeternae ac semper eodem modo sese habentes, quia in divina mente continentur. Et cum ipsae neque oriantur, neque intereant; secundum cas tamen formari dicitur omne quod oriri et interire potest, et omne quod oritur et interit.

47. S. Máximo o Confessor. Lib. de div. nom. shol., vii, 3, PG iv, 352: τα γαρ οντα ... εικονες εισι και ομοιωματα των δειων ιδεων ... εικονες τα της κτισεως αποτελεσματα.

48. S. Máximo o Confessor, Lib. de div. nom. schol., V, 5, PG iv, 317; ων μετεχουσιν.

49. S. Máximo o Confessor. De charit., c. iv, c. 4, PG xc, c. 1148: την εξ αιδιον εν αυτω ο Δημιουργος των οντων προυπαρχουσαν γνωσιν, οτε εβουληθη, ουσιωσε και πρεβαλετο; Lib. de div. nom. schol; IV, 14, PG, iv, 265. Deve-se também levar em consideração os diferentes aspectos da imagem como descrita por S. João Damasceno, De imag. II, 19, PG xciv, 1340-1341: O primeiro aspecto da imagem é natural, φυσικος — o Filho. A segunda imagem é a deliberação pré-eterna — εν τω Θεω. O terceiro aspecto é o homem, que é uma imagem por imitação: — ο κατα μιμησιν υπο Θεου γενομενος — desde que quem é criado não tem a mesma natureza que Ele que não é criado. Nessa passagem S. João Damasceno percebe a semelhança do homem com Deus no fato que a alma de cada homem consiste de três partes; cf. Fragm., PGxcv, 574. Indicando a diferença de naturezas em Deus e no homem, a divina natureza das eternas idéias de Sua deliberação é enfatizada. A noção de "imagem" recebeu sua definição final só durante o período Iconoclástico, especialmente nos escritos de S. Teodoro o Studita. Ele ligou a possibilidade de haver ícones com a criação do homem de acordo com a imagem de Deus. "O fato de o homem ser criado de acordo com a imagem e semelhança de Deus indica que fazer ícones é, em alguma extensão, uma ocupação divina" (S. Teod. Stud. Antirrh. Ill, c. 2, 5, PG xciv. S. Teodoro Seguiu aqui as idéias de Areopagitica. Nesse caso é suficiente mencionar que S. Teodoro sublinha a indissolúvel ligação entre a "imagem" e a "proto-imagem," mas faz uma aguda distincão entre elas na essência da natureza. Cf. Antirrh. III, c. 3, 10, col. 424: "Uma não é separada da outra, exceto com respeito a distincão de essências" [της ουσιας διαφορον]. Cf. К. Schwartzlose. Der Bilderstreit (Gotha, 1890), pp. 174 ff.; o Rev. N. Grossou, S. Theodore the Stylite, His Times, His Life, His WorksKiev, 1908), Russo, pp. 198 ff.; 180 ff.; A. P. Dobroklonsky, S. Theodore the Studite, Vol. I (Odessa, 1901 [1914]), Russo.

50. Uma investigação penetrante e completa do problema das idéias é dada por um notório teólogo Católico Romano, F. A. Staudenmaier, Die Philosophic des Christentums, Bd. I (o único publicado), "Die Lehre von der Idee" (Gieszen, 1840), e também em seu monumental trabalho Die Christliche Dogmatik, Bd. Ill, Freiburg im Breisgau 1848 (recentemente reimpresso, 1967).

51. Discourses and Speeches of a Member of the Holy Synod, Philaret, Metropolitan of Moscow, part 11, Moscow, 1844, p. 87: "Address on the Occasion of the Recovery of the Relics of Patriarch Alexey" (Russo).

  1. S. João Damasceno, De fide orth., I, 4, PG xciv, 800.
  2. .Ibid., I, 9, c. 836.
  3. Ibid., I, 4, c. 797.
  4. Para uma pesquisa sobre essa questão ver I. V. Popov, The Personality and Teachings of the Blessed Augustine, Vol. I, part 2 (Sergiev Posad, 1916, e Lichnost' i Uchenie Blazhennago Avgustina), pp. 350-370 ff. (Russo).

56. Nas palavras de Atenágoras, Legat. c. 10, PG vi, c. 908: εν ιδεα και ενεργεια. Cf. Popov, pp. 339-41; Bolotov, pp. 41 ff.; A Puech, Les apologistes grecs du IIe siècle de notre ère (Paris, 1912). Sobre Orígenes, ver Bolotov, pp. 191 ff. Do aspecto formal, a distinção entre "essência" e "energias" volta para Philo e Plotinus. No entanto, na visão deles Deus recebe Seu próprio caráter, Dele mesmo, somente através de Sua interna e necessária auto-revelação no mundo de idéias, e essa "esfera cosmológica" em Deus eles chamaram de "Verbo" ou "Mente." Por um longo período os conceitos cosmológicos de Philo e Plotinus retardaram a formulação especulativa do mistério Trinitario. De fato conceitos cosmológicos não têm relação com o mistério de Deus e da Trindade. Se os conceitos cosmológicos devem ser descartados, então outro problema aparece, aquele da relação de Deus com o mundo, na verdade, de uma relação livre. O problema é a relação na concepção da "pré-eterna deliberação de Deus." Sobre Philo ver M. D. Muretov, The Philosophy of Philo of Alexandria in its Relation to the Doctrine of St. John the Theologian on the Logos, Vol. I (Moscou, 1885); N. N. Gloubokovsky, St. Paul the Apostle's Preaching of the Glad Tidings in its Origin and Essence, Vol. IΙ (S. Petersburgo, 1910), pp. 23-425; V. Ivanitzky, Philo of Alexandria (Kiev, 1911); P. J. Lebreton, Les origines du dogme de la Trinité (Paris, 1924), pp. 166-239, 570-581, 590-598; cf. excurus A, "On the Energies," pp. 503-506. Cf. também F. Dölger, "Sphragis," Studien zur Geschichte und Kultur des Alterhums, Bd. V, Hf. 3-4 (1911), pp. 65-69.

57. S. Basílio o Grande, C. Eun., Ι, ΙI, 32, PG xxix, 648; cf, St. Atanasio, De decret., n. II, PG xxv, c. 441: "Deus está em tudo por Sua bondade e poder; e Ele está fora de tudo em Sua própria natureza" [κατα την ιδιαν φυσιν].

58. S. Basílio o Grande, Ad Amphil., PG xxxii, 869, А-В.

59. S. Basílio o Grande, C. Eun., I, I, n, 14, PG xxix, 544-5; cf. S. Gregório de Nazianzo, Or. 28, 3, PG xxxvi, 29; Or. 29, col. 88B.

60. S. Gregório de Nazianzo, Or. 38, em Theoph., n. 7, PG xxxvi, 317.

61. S. Gregório de Nissa, Cant. cant. h. xi, PG xlix, 1013 В; In Phalm. II, 14, PG xliv, 585; cf. V. Nesmelov, The Dogmatic System of St. Gregory of Nyssa (Kazan, 1887), pp. 123 ff.; Popov, pp. 344-49.

62. S. Gregório de Nissa, Quod non sint tres dii, PG xlv, 121B: "Nós viemos a saber que a essência de Deus não tem nome e é inexpressível, e nós asseguramos que qualquer nome, vindo de onde quer que seja, a ser conhecido através da natureza humana ou que nos tenha sido passado através das Escrituras, é uma interpretação de alguma coisa a ser compreendida da natureza de Deus, mas que ele não contém em si o significado de Sua natureza em si… Ao contrário, não importa que nome nós venhamos a dar para a própria essência de Deus, esse predicado mostra alguma coisa que tem relação com a essência" [τι των περι αυτην]. Cf. С. Eunom. Л, PG xlv, с. 524-5; De beatitud., Or. 6, PG xliv, 1268: "A entidade de Deus em si, em sua substância, está acima de qualquer pensamento que possa compreende-la, sendo inacessível à conjecturas engenhosas, e nem chega perto dela. Mas sendo assim por natureza, Ele que está acima de todas naturezas e que é invisível e indescritível,pode ser visto e conhecido em outros aspectos. Mas nehum conhecimento será um conhecimento da essência;" In Ecclesiasten, h. VII, PG xliv, 732: "e os grandes homens falam dos trabalhos [εργα] de Deus, mas não de Deus." S. João Crisóstomo Incompreh. Dei natura, h. III, 3, PG xlviii, 722: na visão de Isaias (vi, 1-2), as hostes angélicas contemplam não a "essência inacessível" mas alguma coisa da divina "condescendência," — "O dogma da impenetrabilidade de Deus em Sua natureza e a possibilidade de conhecê-Lo através de Suas relações com o mundo" é apresentado completamente e com profundidade no livro do Bispo Silvestre, Essay on Orthodox Dogmatic Theology, Vol. I, (Kiev, 1892-3), pp. 245 ff.; Vol. II (Kiev, 1892-3), pp. 4 ff. Cf. o capítulo sobre teologia negativa no livro do padre Bulgakov, The Unwaning Light (Moscou, 1917), pp. 103 ff.

63. S. João Damasceno, De fide orth., I, 14, PG xciv, 860.

64. Bispo Silvestre, II, 6.

65. Cf. ibid., II, 131.

66. S. João Crisóstomo, In Hebr. h-2, n. 1.

67. S. João Damasceno, De fide orth., I, 13, PG xciv, 852.

68. A distinção patrística Oriental entre a essência e as energias de Deus sempre permaneceu estranha à teologia Ocidental. Na teologia Oriental é a base da distinção entre teologia apofática e catafática. St. Agostinho decisivamente a rejeitou. Ver Popov, pp. 353 ft.; Cf. Brilliantov, pp. 221 ff.

  1. Dionisio Areopagita, De div. nom., II, 5, PG iii, 641.
  2. Cf., por exemplo, De coel. hier., II, 3, с. 141.
  3. Ep. I, ad Caium, с. 1065А.
  4. De div, nom; xi, 6, с. 956.

73. Dionisio Areopagita, De div. nom., I, 4, PG iii, 589; St. Max. Schol. in V 1; PG iv, 309: προοδον δε την Θειαν ενερεια λεγει, ητις πασαν ουσιαν παρηγαγε; é contrastado aqui com αυτος ο Θεος.

74. De div. nom., IV, 13, PG iii, 712.

75. De div. nom., V, 8, PG iii, 824; V, 5-6, с. 820; XI, 6, с. 953, ss. Cf. todo capítulo de Brilliantov sobre a Areopagitica, pp. 142-178; Popov, pp. 349-52. O pseudo caráter epigráfico da Areopagítica e sua relação próxima com o Neo-Platonismo não diminui sua importância teológica, que foi reconhecida e testificada pela autoridade dos Padres da Igreja. Certamente há necessidade de uma nova investigação e avaliação histórica e teológica dela.

  1. Dionisio Areopagita, De div. nom; IX, PG iii, c. 909.

77. S. Gregório Palamas, Capit. phys., theol. etc., PG cl, c. 1169.

78. Ibid., cap. 75, PG cl, 1173: S. Gregório procede de uma tripla distinção em Deus: a da essência, a da energia, e a da Trindade das Hipóstases. A união com Deus κατ ουσιαν é impossivel, pois, de acordo com a opinião geral dos teólogos, em entidade, ou em Sua essência. Deus é "imparticipável" [αμεθεκτον]. A união de acordo com as hipóstases [καθ υποστασιν] é única para o Verbo Encarnado : cap. 78, 1176: as criaturas que fizeram progresso estão unidas a Deus de acordo com Sua energia; elas participam não de Sua essência mas de Sua energia [κατ ενεργειαν]: cap. 92, 1168; através da participação na "Graça dada por Deus" elas são unidas com o próprio Deus (cap. 93). A radiação de Deus é a energia-dada-por-Deus, participantes das quais tornam-se deificados, é a graça de Deus [χαρις] mas não a essência de Deus [φυσις]: cap. 141, 1220; cap. 144, 1221; Theoph. col. 912: 928D: cf- 921, 941. Cf. o Synodikon do concílio de 1452 no livro doBispo Porphyrius [Uspensky] History of Mt. Athos, III, 2 (St. Petersburg, 1902), suplementos, p. 784, e no Triodion (Veneza, 1820), p. 168. Esse é o pensamento de S. Máximo: μθεκτος μεν ο Θεος κατα τας μεταδοσεις αυτου, αμεθεκτος δε κατα το μηδεν μετεχειν της ουσιας αυτου, apud Euth. Zyg. Panopl., tit. 3, PG cxxx. 132.

79. Bispo Porphyrius, 783.

80. S. Gregório Palamas, Theoph., PG cl, 94l.

81. Ibid., 940: ει και διενηνοχε της φυσεως, ου διασπαται ταυτης. Cf. Triodion, p. 170; e Porphyrius, 784: "Daqueles que confessam um Deus Todo-Poderoso, que tem três Hipóstases, em Quem não só a essência e hipóstases não são criadas, mas a própria energia também, e daqueles que dizem que a divina energia procede da essência de Deus e procede indivisamente, e que através da processão designa sua indizível diferença, e que através da indiviza processão mostra sua unidade supranatural .. memória eterna." Cf. ibid., p. 169, Porphyrius, 782 — ενωσις Θειας ουσιας και ενεργειας ασυγχυτον ... και διαφορα αδιαστατη. Ver S. Marcos Eugen. Ephes. Cap. Syllog., apud W. Gasz, Die Mystik des N. Cabasilas (Greiszwald, 1849), App. II, c. 15, p. 221: επομενην ... αει και συνδρομον.

82. S. Gregório Palamas, Cap., 127, PG cl, 1209: ουτε γαρ ουσια εστιν ουτε συμβεβηκος; p. 135, 1216: το γαρ μη μονον ουκ απογινομενον, αλλ ουδ ευξησιν η μειωσιν ηντιναουν επιδεχομενον, η εμποιουν, ουκ εσθ οπως αν συναριθμοιτο τοις συμβεβηκοσιν ... αλλ εστι και ως αληθως εστιν, ου των καθ εαυτο υφεστηκοτων εστιν; ... εχει αρα ο Θεος, και ο ουσια, και ο μη ουσια καν ειμη συμβεβηκος καλειτο, την Θειαν δηλονοτι βολην και ενεργειαν; Theoph. p. 298: την δε θεατικην δυναμιν τε και ενεργειαν του παντα πριν γενεσεως ειδοτος και την αυτου εξουσιαν και την προνοιαν; c.f. p. 937, 956.

83. S. Gregório Palamas, Cap. 96, PG cl, 1181: ει ... διαφερει της Θειας ουσιας η Θεια ενεργεια, και το ποιειν, ο της ενεργειας εστι κατ ουδεν διοισει του γενναν και εκπορευειν, α της ματος και του προβληματος; cf. Cap. 97, 98, 100, 102; Cap. 103, 1192: ουδε τω θελειν δημιουργει Θεος, αλλα το περφυκεναι μονον; c. 135, 1216: ει τω βουλεσθαι ποιει ο Θεος, αλλα ουχ απλως τω πεφυκεναι, αλλο αρα το βουλεσθαι, και ετερον το πεφυκεναι. S. Marcos de Éfeso, apud Gasz., s. 217: ετι ει ταυτον ουσια και ενεργεια, ταυτη τε και παντως αμα τω ειναι και ενεργειν τον Θεον αναγκη συνιδιος αρα τω Θεω η κτισις εξ αιδιου ενεργουντα κατα τους ελληνας.

84. St. Gregório Palamas, Cap. 125, PG cl, 1209; S. Marcos de Éfeso, apud Gasz., c. 14, s. 220; c. 9, 219: с. 22, 225: ει πολυποικιλος μεν η του Θεου σοφια λεγεται τε και εστι πολυποικιλος δε αυτου η ουσια εστιν, ετερον αρα η αυτου ουσια και ετερον η σοφια; c. 10, 209.

85. S. Gregório Palamas, Theoph., PG cl, 929; 936; 941; S. Marcos de Éfeso, apud Gasz., c. 21, s. 223.

86. A teologia Bizantina a respeito dos poderes e energias de Deus ainda espera tratamento monográfico, ainda mais que a maior parte dos trabalhos de S. Gregório Palamas ainda estão em MSS. Para as característcas gerais e os movimentos teológicos dos tempos, ver livro do Bispo Porphyrius, First Journey into the Athonite Monasteries and Sketes, parte II, pp. 358 ff., e pelo mesmo autor, History of Mt. Athos, part III, section 2, pp. 234 ff.; Arquimandrita Modestus, St. Gregory Palamas, Archbishop of Thessalonica (Kiev, 1860), pp. 58-70, 113-130; Bispo Alexey, Byzantine Church Mystics of the XIV Century (Kazan, 1906), e no Grego de G. H. Papamichael, St. Gregory Palamas, Archbishop of Thessalonica (St. Petersburg-Alexandria, 1911); cf. a Review of the book by J. Sokolov in the Journal of the Ministry of Public Education, 1913, Abril-Julho números. A distinção Oriental entre essência e energia choca-se com severa censura da teologia Católica Romana. Petavius fala dela em grande extensão e muito asperamente, Petavius, Opus de theologicis, ed. Thomas, Barri-Ducis (1864), tomus I, I, I, c. 12-13, 145-160; III, 5, 273-6.

87. St. Atanasio, C. arian. Or. III, c. 62-63, PG xxvi.

88. S. Máximo Confessor, Ambigu., PG xci, c. 1261-4.

89. St. Atanasio, C. arian., II, 31, PG xxvi, c. 212: "Não foi para nós que o Verbo de Deus recebeu Seu ser; ao contrário, é por Ele que nós recebemos os nossos; e todas as coisas foram criadas... por e para Ele (Col. 1:16). Não foi por causa de nossa enfermidade que Ele, sendo poderoso, recebeu Seu ser de Deus Uno, que através Dele como por algum instrumento nós fomos criados para o Pai. Longe disso. Esse não é o ensinamento da verdade. Tivesse sido agradável não criar criaturas, mesmo assim o Verbo estava com Deus, e Nele estava o Pai. As criaturas não poderiam receber seus seres sem o Verbo, eis porque elas receberam os seus seres através Dele, o que é a única coisa certa. Ainda mais porque o Verbo é, pela natureza de Sua essência, Filho de Deus; ainda mais que o Verbo é de Deus e é Deus, como Ele mesmo disse, e ainda as criaturas somente poderiam receber seus seres através Dele."

90. S. Metódio de Olympus, Conviv., VI, I, PG xvii, c. 113.

91. S. João Damasceno, C. Jacobitas, n. 52, PG xciv, 144.

92. Ibid., De fide orth., I, 8, c. 812.

93. S. Simeão, Βιβλος των ηθικων, III—St. Symeon le Nouveau Theologien, Traités théologiques et Ethiques "Sources Chrétiennes," No. 122 (Paris, 1966), p. 414: Ενθεν τοι και βλεπομενος παρα παντων και πασας βλεπων αυτος τας αναριθμητους μυριαδας και το εαυτου ομμα εχων αει ατενιζον και αμετακιντων ισταμενον, εκαστος αυτων δοκει βλεπεσθαι παρ αυτου και της εκεινου απολαυειν ομιλιας και κατασπαζεσθαι υπ αυτου ... αλλος αλλο τι δεικνυμενος ειναι και διαρων εαυτον κατ αξιαν εκαστω, καθα τις εστιν αξιος ...

94. S. Gregório Palamas, Theoph., PG cl. 941.

95. Cf. απεικονισμα in S. Gregório de Nissa, De hom. opif., PG xliv, 137. St. Agostinho felizmente distinguiu e contrastou imago ejusdem substantiae, man. August. Quaest. in heptateuch, I, V, qu. 4, PL xxxiv, c. 749. Para o mais completo catálogo de opiniões dos Padres da Igreja sobre a "imagem de Deus" em Russo, ver V. S. Serebrenikov, The Doctrine of Locke on the Innate Principles of Knowledge and Activity (St. Petersburgh, 1892), pp. 266-330.

96. S. Máximo Confessor, Ambigu., PG xci, c. 1093.

97. St. Gregório de Nazianzo, Or. 43, In laudem Basil. Magni, PG xxxvi, c. 560.

98. St. Amphilochius, Or. I In Christi natalem, 4.

99. St. Atanásio, Ad Adelph., 4, PG xxvi, 1077.

100. Ibid., De incarn. et с. аrian., 8, с. 996.

101. Ibid., С. arian., Ι, 46. 47, с. 108-109.

102. Ibid., De incarn. et c. arian., 8, с. 998.

103. Ibid., De incarn; 4, с. PG xxv, 104: εις το κατα φυσιν επεστρεπεν.

104. Ibid; С. arian., II, 58-59, с. 272-3. Cf. N. V. Popov, The Religious Ideal of Sl. Athanasius, Sergiev Posad, 1903.

105. Para um sumário de citações de S. Gregório ver K. Holl, Amphilochius von Ikonium in seinem Verhältniss zu den grossen Kappa-doziern (Tübingen and Leipzig, 1904), p. 166; cf. Também N. Popov, "The Idea of Deification in the Ancient Eastern Church" no jornal Questions in Philosophy and Psychology (1909, II-97), pp. 165-213.

106. Cf. Holl, 124-125, 203 ff.

107. S. Macário do Egito, hom. 44, 8, 9, PG xxxiv; αλλαγηναι και μεταβληθηναι ... εις ετεραν καταστασιν, και φυσιν θειαν.

108. Cf. Stoffels, Die mystische Theologie Makarius des Aegyptars (Bonn, 1900), pp. 58-61.

109. S. Macário do Egito, De amore, 28, PG xxxiv, 932: ενοικει δε ου καθ ο εστιν.

110. St. Máximo Confessor, Cap, theol. et. oecon. cent., I, 67, PG xci, 1108: κατα χαριν γαρ, αλλ ου κατα φυσιν εστιν η των σωζωμενων σωτηρια.

111. Ibid., Cent, II, 21, col. 1133.

112. Ibid., Ad Ioannem cubic., ep., XLII, c. 639; cf. Div. cap., I, 42, PG xc, 1193; De charit., c. III, 25, c. 1024: κατα μετουσιαν, ου κατ ουσιαν, κατα χαριν, ου κατα φυσιν, Ambigu., 127a: "sendo deificado pela graça do Deus Encarnado;" PG xci, 1088, 1092.

113. S. Máximo Confessor, Ambigu. 222: A meta da ascensão da criatura consiste nisso — que, tendo unido a natureza criada com a incriada por amor, para mostrá-las em sua unidade e identidade — εν και ταυτον δειξειε — depois de ter adquirido graça integral e completamente compenetrado com o todo de Deus tornar-se tudo que é Deus — παν ει τι περ σετιν ο ΘεοςPG xci, 1038; cf. também Anastasio do Sinai Οδηγος, c. 2, PG lxxxix, c. 77: "Deificação é uma ascensão para o melhor, mas não é um acréscimo ou mudança em natureza — ου μην φυσεως μειωσις, η μεταστασις —nem é uma mudança da própria natureza."

114. S. Máximo Confessor, 43 Ad Ioann. cubic; PG xci, 639; "Ele nos criou para esse propósito, que nós nos tornemos participantes da Divina natureza e participantes da própria eternidade, e que nós possamos aparecer para Ele à Sua semelhança, pela deificação através da graça, através da qual foi trazido o vir-a-ser [η ουσιωσις] de tudo que existe, e o trazer-para-ser e gênese do que não existe — και η των μη ορτων παραγωγη και γενεισις.

115.Bispo Teófano (o Recluso), Commentary on the Epistles of Sf. Paul the Apostle to the Ephesians (Moscou, 1882), em Russo, pp. 112-113, aos Efésios, I, 23.

116. Nicholas Cabasilas, Stae liturgiae expositio, cap., 38, PG cl., c. 452. (Versão Russa — Writings of the Fathers and Doctors of the Church concerning the Divine Services of the Orthodox Church [St. Petersburg, 1857], p. 385.

 

Folheto Missionário número P095j

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Redator: Bispo Alexandre Mileant

(church_tradition_florovsky_p.doc, 02-29-2004)

 

 

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Date

Jose Arimatea

2/25/2004